Em
memória de
Tânia
Beatriz Pacheco Pinto.
E
para
Fanny
Abramovich,
que
me fez lembrar.
“Aqui
é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde
um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em
que direção se vai?”
(Adélia
Prado, O Coração Disparado)
VÊNUS
HÁ
seis anos, ele estava apaixonado por ela. Perdidamente. O problema – um dos
problemas, porque havia outros, bem mais graves –, o problema inicial, pelo
menos, é que era cedo demais. Quando se tem vinte ou trinta anos, seis anos de
paixão pode ser muito (ou pouco, vai saber) tempo. Mas acontece que ele só
tinha doze anos. Ela, um a mais. Estavam ambos naquela faixa intermediária em
que ficou cedo demais para algumas coisas, e demasiado tarde para a maioria das
outras.
Ela
chamava-se Beatriz. Ele chamava-se – não vem ao caso. Mas não era Dante, ainda
não. Anos mais tarde, tentaria lembrar-se de Como Tudo Começou. E não
conseguia. Não conseguiria, claramente. Voltavam sempre cenas confusas na
memória. Misturavam-se, sem cronologia, sem que ele conseguisse determinar o
que teria vindo antes ou depois daquele momento em que, tão perdidamente,
apaixonou-se por Beatriz.
Voltavam
principalmente duas cenas. A primeira, num aniversário, não saberia dizer de
quem. Dessas festas de verão, janelas da casa todas abertas, deixando entrar
uma luz bem clara que depois empalideceria aos poucos, tingindo o céu de
vermelho, porque entardecia. Ele lembrava de um copo de guaraná, da saia de
veludo da mãe – sempre ficava enroscado na mãe, nas festas, espiando de longe
os outros, os da idade dele. Lembrava do copo de guaraná, da saia de veludo
(seria verde-musgo?) e do balão de gás que segurava. Então a mãe perguntou, de
repente, qual a menina da festa que ele achava mais bonita. Sem precisar pensar,
respondeu:
–
Beatriz.
A
mãe riu, jogou para trás os cabelos – uns cabelos dourados, que nem o guaraná e
a luz de verão – e disse assim:
–
Credo, aquela estrelete?
Anos
mais tarde, não encontraria no dicionário o significado da palavra estrelete.
Mas naquele momento, ali com o balão numa das mãos, o guaraná na outra,
cotovelos fincados no veludo (seria azul-marinho?) da saia da mãe, pensou
primeiro em estrela. Talvez por causa do movimento dos cabelos da mãe, quando
tudo brilhou, ele pensou em estrela. Uma pequena estrela. Uma estrela magrinha,
meio nervosa. Beatriz tinha um pescoço longo de bailarina que a fazia mais alta
que as outras meninas, e um jeito lindo de brilhar quando movia as costas muito
retas, olhando adulta em volta.
Estrelete
estrelete estrelete estrelete – repetiu e repetiu até que a palavra perdesse o
sentido e, reduzida a faíscas, saísse voando junto com o balão que ele soltou,
escondido atrás do taquareiro. Bem na hora em que o sol sumia e uma primeira
estrela apareceu. Estrela D’Alva, Vésper, Vênus, diziam. Diziam muitas coisas
que ele ainda não entendia.
CENAS
A
outra cena acontecia num dos festivais de fim de ano do Grupo Escolar, no Cine
Cruzeiro do Sul.
Ele
estava na plateia, porque não sabia cantar nem dançar nem declamar, nem nada
que os outros pudessem sentar e aplaudir – como ele sentava e aplaudia agora.
Então Beatriz entrava no palco com um vestido branco repolhudo, sentava numa
cadeira e a professora-apresentadora colocava um acordeom nos braços dela.
Embora alta demais para a idade, Beatriz quase desaparecia no palco do cinema,
atrás daquele enorme acordeom. Dava só para ver o rosto pálido, sério, a franja
lisa acima do instrumento, as pernas compridas abaixo, tão finas que os carpins
de renda desabavam sobre os sapatos de verniz preto e presilha. As duas mãos de
unhas roídas, nas teclas.
Então,
acontecia. Na memória, anos depois, tinha a impressão de que havia um silêncio
pouco antes dela começar. Um silêncio precedendo o brilho. Talvez não, só
fantasias.
De
repente, logo após esse silêncio incerto, os dedos de unhas roídas de Beatriz
começavam a mover-se sobre as teclas. Do acordeom e da voz dela, uma voz fina
de vidro, agulha, espinho, brotava aos poucos uma valsinha chamada O Destino
Desfolhou. O-nosso-amor-traduzia-felicidade-e-afeição, ele lembraria,
suprema-glória-que-um-dia-tive-ao-alcance-da-mão. O coração bateu mais forte.
Como quando soltara o balão, de tardezinha, atrás do taquaral. E alguma coisa
brilhou no ar entre vermelho e roxo do entardecer, no meio das paredes
descascadas do Cine Cruzeiro do Sul. Era tudo: cenas.
Depois
dessa, havia outras.
Cenas
mais comuns, com ele sentado quase sempre atrás ou ao lado dela, na primeira,
segunda, terceira, quarta e quinta séries primárias. Colava de Beatriz, em
Aritmética. Ela colava dele, em Linguagem. Tiravam notas boas. Mas em
Comportamento, todo mês ganhavam o mínimo, porque não paravam de conversar.
Todas as manhãs, menos sábado e domingo.
Sábado
não tinha Beatriz. Mas domingo, vezenquando, na missa das dez, novamente ela
aparecia, ao lado da mãe. Dona Lucy não usava saias de veludo nem tinha cabelos
dourados: era viúva, vestia preto, cabelos presos num coque, rosário na mão. Ao
lado dela, o brilho de Beatriz desaparecia, ofuscado por uma dor que ela ou ele
só seriam capazes de compreender mais tarde, se houvesse tempo. E não havia.
A SEPARAÇÃO
De
repente – ou não de repente, mas tão aos pouquinhos, e tão igual todo dia que
era como se fosse assim, num piscar de olhos, num virar de página – passou-se
muito tempo. E quando começaram o ginásio houve: A Separação. Ele foi para o
colégio Estadual, ela para o colégio das Freiras. Depois das férias grandes,
pelas manhãs, num fim de verão, não havia mais Beatriz.
Aos
domingos, sim, tinha Beatriz na matinê das quatro. Sem dona Lucy. Havia agora
Betinha, Aureluce, Tanara e outras amigas barulhentas em volta, uma fila
inteira delas no Cine Cruzeiro do Sul. Com blusinhas de banlon e risadinhas, pipocas
e barulho de papel de bala amassado justo na hora em que Johnny Weissmuller ia
cair nas mãos dos pigmeus canibais. Areias movediças, caçadores de cabeça,
dardos fatais. Odiava todas as gurias: gasguitas gasguitas. Menos ela. Quando
retardava ou apressava o passo para cruzá-la na saída, ruborizava um pouco,
dizia ó-h! cumprimentando – e apressava o passo de novo, para afastar-se logo e
levá-la por dentro, perdoando tudo.
Ela
crescia. Crescia não como as outras, para os lados, para a frente e para trás.
Beatriz crescia principalmente para cima. Pescoço cada vez mais longo,
rabo-de-cavalo preto liso escorrido batendo nas costas, abaixo dos ombros. Ele,
não. Ele não crescia para lado nenhum. Só para dentro, parecia. Tinha horror de
uma coisa densa, meio suja, entupindo ele por dentro. Descoordenava os
movimentos, descontrolava a voz. Umas espinhas, uns pêlos apareciam em lugares
imprevistos. Sentia-se pesado, lerdo, desconfortável como se não coubesse
dentro do próprio corpo, suspenso entre ter perdido um jeito antigo de
comandá-lo e ainda não ter encontrado o jeito novo. Que devia haver um.
Nessa
época, começaram os boatos. A filha da Lucy, diziam, mas mudavam logo de
assunto quando ele se aproximava. Que horror, ainda conseguia ouvir, que
tragédia. Primeiro o marido, agora a filha. Coitadinha, nem quinze anos.
Aprendeu a maneira de ouvir sem ser visto. Na sombra, atrás da porta.
Até
surpreender, um dia, a palavra nova: leucemia. No dicionário, encontrou. Mas
não conseguiu entender direito. Glóbulos, era bonito, redondo. Parecia pétala,
sânscrito, dádiva: gló-bu-los. Brancos, excesso. Mata? perguntou no colégio.
Disseram que sim. Em pouco tempo.
A URGÊNCIA
Então
baixou a pressa.
Não
tinha mais um dia a perder, pois embora fosse muito cedo, começou a suspeitar
que era também desesperadamente tarde demais. Procurou Betinha, bilhete pronto,
escrito com Parker em folha de arquivo. Quero falar contigo amanhã sem falta,
na praça, depois da aula.
–
Tu sabes? – perguntou Betinha, olho no olho.
Ele
disse que sim.
De
tardezinha, veio a resposta: Beatriz concordava. Amanhã na praça, sem falta.
–
Mas tu sabes mesmo? – Betinha perguntou novamente.
Outra
vez, disse que sim. Perguntou se era verdade. Betinha sacudiu a cabeça, que
era. Antes de ir embora, ainda falou:
–
Olha bem para o pescoço dela. Tem uns caroços aqui, assim, inchados. Aquilo é a
doença.
Ele
olhou bem, quase meio-dia da manhã seguinte, sentados num banco do centro da
praça. Enquanto pedia, trêmulo de amor:
–
Beatriz, quero namorar contigo.
Ela
apertou contra o peito um livro de História do Brasil:
–
Tu é muito criança – disse.
Quase
não conseguia olhar para ela. Olhava o chão de pastilhas coloridas no centro da
praça. Formavam círculos, quadrados, estrelas grandes e pequenas. Menores
ainda, estreletes.
–
Mas se eu sou criança – foi dizendo devagar, convincente –, se eu sou criança
tu também é, porque só tens doze anos.
–
Treze – ela corrigiu. E ergueu o rosto para o sol no meio do céu. Os gânglios
inchados quase desapareciam assim. Gân-gli-os, repetiu mentalmente, essa
palavra que quase não conhecia.
Espantado,
percebeu que Beatriz usava batom. Batom clarinho, mal se notava. Parecia tão
divertida e distante que aquela coisa densa, meio suja, dentro dele começou a
se contorcer feito quisesse sair para fora. Cobra armando o bote, vômito armado
na garganta. Ainda tentava controlá-la, quando insistiu:
–
Eu gosto de ti, Beatriz. Eu gosto muito de ti. Eu gosto tanto de ti.
–
Pois eu não – ela abaixou os olhos, procurando os dele. Quando encontrou, falou
quase sorrindo, como quem dá uma coisa doce, não como quem enfia uma faca
afiada: – Gosto só como amigo.
–
Como amigo, não me interessa – gemeu.
Devia
ser março, porque o sol era tão quente que fazia gotas de suor escorrerem entre
as espinhas da cara dele até o lábio superior, onde aqueles pêlos escuros
começavam a se adensar. Sua cara de macho em preparação devia estar nojenta
como a de um bicho. Mais tarde, bem mais tarde, se lhe perguntassem, mas
ninguém saberia, poderia explicar que não tinha tido culpa. Foi aquela coisa
suja de dentro que subiu descontrolada garganta acima, para atravessar a língua
e os dentes até arredondar-se de repente na pergunta cruel que jogou no ar
morno de meio-dia (e Sol na X, era o destino):
–
Beatriz, tu sabe que vai morrer?
Ela
levantou. Nem pálida, nem lágrimas nos olhos. Remota, fatídica. Ele levantou
também. Só então percebeu que, além do batom, ela usava sapatos de saltinho que
a faziam quase dois palmos mais alta que ele. Por trás dela, podia ver a torre
da igreja. Talvez uma ou duas palmeiras. A caixa d’água ao longe, muito alta. O
sino começou a bater. Beatriz virou as costas e saiu caminhando, pescoço
erguido, o livro de História apertado contra os seios tão empinados que, num
último golpe, percebeu: além do batom e dos saltinhos, Beatriz também usava
sutiã.
Beatriz
era uma mulher. E ia morrer
A PARTIDA
Volta,
quis dizer, parado no meio da praça.
Mas
agora, tantos anos depois, não saberia se teve mesmo vontade de chamar ali, ao
meio-dia de uma tarde de Peixes, ou se repetiria depois baixinho, à noite,
sozinho na cama, no mesmo quarto com o irmão mais velho, nessa noite ou em
todas as outras depois dessa, à medida que o verão fosse indo embora e as
noites todas se tornassem mais e mais frias, junho, julho, agosto adentro,
enrolado em cobertores, vida afora repetindo volta, Beatriz, volta que eu cuido
de ti e dou um jeito qualquer de tu ficares boa e então nós podemos ir embora
para a África ou Oceania ou Eurásia ou qualquer outro lugar onde tu possas
ficar completamente boa do meu lado e para sempre, volta que eu te cuido e não
te deixo morrer nunca. Não disse nada. Pisando lenta, olhando o sol, Beatriz
foi embora para sempre dos doze anos de vida dele.
AH, DINDI...
O
tempo passou, depois disso, mais um pouco. Um, dois anos em que, além de para
dentro, ele começou a crescer igual aos outros: em todas as direções. Aqueles
pêlos finos engrossaram sobre o lábio superior, outros surgiram, escureceram
curvas, reentrâncias. As espinhas desapareceram, a voz definiu-se. Aquela coisa
densa de dentro transformou-se numa espécie de leite espesso que descobriu o
jeito de puxar para fora, com movimentos da mão e estremecimentos do corpo. Na
cama ao lado, Toninho repetia:
–
Vai criar cabelo na palma da mão. Vai ficar tuberculoso desse jeito. Se quiser,
um dia me fala, te levo na zona. Ou vai sozinho, chega na Morocha e diz que é
meu irmão, ela já sabe.
Foram
esses os anos em que Beatriz foi embora. Para a capital, para se tratar,
diziam.
Isso
depois de uma fase em que ela trocou aquele batom rosa clarinho por outro
vermelho, muito forte, aqueles saltos baixos por outros altíssimos, e decotes
fundos, costas de fora, saias curtas, pernas cruzadas no clube, risadas
estridentes na rua, cigarros e rosas de ruge nas faces cada vez mais brancas.
De mão em mão, Beatriz passou. Pelas mãos de Cacá, que na aula de Educação
Física abaixava o calção para mostrar o pau, o maior do colégio, quem quisesse
ver. Ou pegar, alguns pegavam. Pelas mãos de Mauro, que tinha cabelo no peito e
encestava bola no basquete como ninguém. E Luizão e Pancho e Caramujo e Bira e
tantos outros que nem lembrava direito o nome, a cara, divulgando pelas
esquinas, pela sinuca, pela praça ou matinê: ela faz de tudo, só chegar e meter
a mão, dá pra qualquer um – uma percanha.
Com
ele, quase nada aconteceu, além de uma tentativa desastrada de namorar Betinha,
depois que Beatriz se foi. Mas só perguntava por ela, até que um dia Betinha
encheu, foi namorar Luizão, que tinha uma lambreta. Quase nada além daquele
corpo crescendo em direções imprevistas, de um B gótico desenhado em segredo e
carinho nas folhas finais dos cadernos, principalmente os de Geografia, quando
tentava decorar as capitais – Suíça, capital Berna; Polônia, capital Varsóvia;
Honduras, capital Te-gu-ci-gal-pa - e a cada nome estranho repetia e repetia,
morto de saudade: para lá, então, para lá, Beatriz, quem sabe – vamos?
Aprendeu
a dirigir o Simca Chambord branco forrado de vermelho do pai. Mas Passo da
Guanxuma acabava logo: só restavam quatro estradas de terra vermelha poeirenta
batida, perdidas até o horizonte. Precisou professor particular de Matemática.
Ficou para segunda época em Latim, não conseguia passar da primeira declinação,
terra, terrae, terram. Escreveu sonetos de pé quebrado, sem parar ouviu
Silvinha Telles num compacto cantando
ah-Dindi-se-soubesses-o-bemque-eu-te-quero-o-mundo-seria-Dindi-lindo-Dindi...
Até
aquele dia.
MARTE
Era
sempre verão quando alguma coisa acontecia. Talvez porque no verão as pessoas
tiravam cadeiras para fora de casa e, pelas calçadas, olhando estrelas, falavam
de tudo que não costumavam falar durante o dia. Ele tinha aprendido o jeito de
se confundir com as sombras, sem que o notassem. Tinha-se tornado uma sombra à
espreita do que nunca era dito claramente, à beira do momento em que não
haveria mais nenhum segredo a descobrir e a vida, então, se tornasse crua e
visível, por tê-la tocado ele mesmo, não por ouvir dizer.
Frase
após frase, ficou ouvindo:
–
E a filha da Lucy, tu já soube?
–
Quem, a Beatriz?
–
E a Lucy tinha outra filha, criatura?
–
Perguntei por perguntar. Que aconteceu?
–
Pois diz que morreu, em Porto Alegre.
–
Mas não me conta, criatura. Quando?
–
Ontem, tresantontem. Não sei direito. Vão enterrar lá mesmo.
–
Que barbaridade Tão novinha.
–
Pois é. Mas uma perdida. Não tinha nem dezesseis anos.
–
Um guria bonitinha. Meio espevitada, mas jeitosinha.
–
Diz que morreu grávida.
–
Pelo amor de Deus, não me conta.
–
Que sabia que ia morrer. Aí deu um desgosto, emputeceu de repente.
–
Mas quem era o pai?
–
Deus é que sabe. Só aqui no Paço, retoçou com todos. O Cacá da Zulma, o Luizão
da Lia, o Eira do Otaviano. Fora os de lá, que ninguém sabe.
–
Que coisa de louco.
–
Diz que a cabeça rachou toda antes de morrer.
–
Como, rachou?
–
Pois rachou, ué. Que nem porongo no sol. A tal da doença.
–
Mas a pobre da Lucy. Primeiro o marido, depois a filha.
–
Cada vivente com a sua sina.
–
A pobre da Beatriz.
–
Que Deus a tenha.
–
Escuta, teu filho não tinha um rabicho por ela?
–
Tinha? (Tanto tempo hoje, a garrafa de vinho quase vazia e a voz travada de
Marjanne Faithfull cantando As Tears Goes By, tantas dores novas, e tão
inesperadas, tivesse visto de lá, naquele tempo, com aqueles olhos que nunca
mais teria.) Tinha tido mesmo – tão grosseiro, como se diz? – um rabicho por
Beatriz? Não sabia responder direito.
Deve
ter olhado para cima e visto a estrela vermelha (seria Marte?) que naquele
verão costumava brilhar justamente sobre a casa da Morocha. Teve um impulso,
coice no peito, suor na testa. Mas esperou que o assunto mudasse, virando
página após página de O Cruzeiro, jogado no sofá-cama da sala. David Nasser,
disco voador, Márcia e Maristela, candangos, Odete Lara, coisas assim. Só
depois de ter remanchado horas pela casa – outra vez então aquela coisa grossa,
aquela coisa porca, aquela coisa furiosa dando voltas dentro dele – resolveu
emergir devagarinho das sombras para a luz do poste sobre as pessoas sentadas
na calçada.
E
visto assim, à luz do poste, dos cigarros, vaga-lumes e estrelas, camisa aberta
ao peito, as duas mãos enfiadas fundo nos bolsos, parecia tão seguro e decidido
que ninguém teria coragem de negar absolutamente nada quando pediu:
–
Pai, me empresta o auto?
POEIRA
Deu
a partida e enveredou pelos barrancos em direção à casa da Morocha. Alto do
chão.
–
El hermano de Tonico? – ela perguntou, oferecendo a cuja de mate novo, dente de
ouro na frente. – Entonces, eres tu? Bién que él me tenha hablado, muy guapo.
Os
anéis cintilaram quando ela abriu a porta para que ele penetrasse no interior
enfumaçado. Já estavam lá, ou chegariam depois, não lembrava, o Caramujo, o
Pancho, o Bira e talvez um ou outro daqueles bagaceiras todos que tinham tocado
em Beatriz. Não falou com ninguém. Sentou sozinho numa mesa, pediu um maço de
Hudson com ponta, uma cerveja. Antes que pedisse a segunda, uma loira meio
velha, olhos verdes e falha num dente, pediu licença para sentar com ele. Usava
saia justa de veludo de cor viva, de que nunca mais conseguiu lembrar a cor
exata, embora tivesse certeza de que não era verde-musgo nem azul-marinho.
Na
manhã seguinte, quando Toninho aos berros finalmente conseguiu acordá-lo,
lembrava apenas de ter pedido para ouvir O Destino Desfolhou, depois de uma
vomitada espetacular bem no meio da sala. Mais que tudo, das pernas
escancaradas de uma loira meio velha numa cama de lençóis com cheiro estranho.
O resto, névoa opaca, gosto de palha na boca.
Hoje – tantos anos depois, neurônios arrebentados de
álcool, drogas, insônia, rejeições, e a memória trapaceia, mesmo com a atenção
voltada inteira para o centro seco daquilo que era denso e foi-se dispersando
aos poucos, como se perdem o tempo e as emoções, poeira varrida, por mais
esforços que faça, plena madrugada, sede familiar, telefone – mudo – não
consegue lembrar de quase mais nada além disto tudo que tentou ser dito sobre
Beatriz ou ele mesmo ou aquilo que agora chama, com carinho e amargura, de:
Aquele Tempo.
Tempo, faz tanto tempo, repetem – esquece. Continuam
a dizer coisas que ele não entende.
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