"Porque quando se é branco
como o fênix branco
e os outros são pretos,
os inimigos não faltam”.
(Antonin Artaud,
citado por Anaïs Nin, em
Je suis le plus malade dês surréalistes)
André
enlouqueceu ontem à tarde. Devo dizer que também acho um pouco arrogante de
minha parte dizer isso assim – enlouqueceu –, como se estivesse perfeitamente
seguro não só da minha própria sanidade mas também da minha capacidade de
julgar a sanidade alheia. Como dizer, então? Talvez: André começou a
comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou: André estava um tanto
desorganizado; ou ainda: André parecia muito necessitado de repouso. Seja como
for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à
tarde resolvi tomar essa providência, André – desculpem a minha audácia ou
arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: André enlouqueceu
completamente. Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto
no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas,
distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, lendo ou recortando
figurinhas, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que André
seria feliz lá. E devo dizer ainda que gostaria de vê-lo feliz, apesar de tudo
o que me fez sofrer nos últimos tempos. Mas bastou uma olhada no talão de
cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei,
parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca:
então-optei-pelo-hospício. As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a
verdade, não optei propriamente. Apenas:
1º)
eu tinha pouquíssimo dinheiro e André menos ainda, isto é, nada, pois deixara
de trabalhar desde que as borboletas começaram a nascer entre seus cabelos;
2º)
uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça.
Além
disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito
retirados – na Suíça, acho –, e eu não poderia visitá-lo com tanta frequência
como gostaria. O hospício fica aqui perto. Então, depois desses esclarecimentos,
repito: optei pelo hospício. André não opôs resistência nenhuma. Às vezes chego a pensar que
ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim.
Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na
portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome,
endereço, idade, se já tinha estado lá antes essas coisas – ele não dizia nada
e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por
um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se André não
estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ficasse
por lá durante muito tempo. Mas a cara dele não enganava ninguém, sem se mover,
sem dizer nada, aqueles olhos parados, o cabelo todo em desordem. Quando dois
enfermeiros iam levá-lo para dentro eu quis dizer mais alguma coisa, mas não
consegui. Ele ficou ali na minha frente, me olhando. Não me olhando
propriamente, havia muito tempo não olhava mais para nada, seus olhos pareciam
voltados para dentro, ou então era como se transpassassem as pessoas ou os
objetos para ver, lá no fundo deles, uma coisa que nem eles próprios sabiam de
si mesmos. Eu me sentia mal com esse olhar, porque era um olhar muito... muito
sábio, para ser franco. Completamente insano, mas extremamente sábio. E não é
nada agradável ter em cima de você, o tempo todo, na sua própria casa, um olhar
desses, assim trans-in-lúcido. Mas de repente seus olhos pareceram piscar, mas
não devem ter piscado – devo esclarecer que, para mim, piscar é uma espécie de vírgula
que os olhos fazem quando querem mudar de assunto. Sem piscar, então, os olhos
dele piscaram por um momento e voltaram daquele mundo para onde André se havia
mudado sem deixar endereço. E me olharam os olhos dele. Não para uma coisa
minha que nem eu mesmo via, nem através de mim, mas para mim mesmo fisicamente,
quero dizer: para este par de órgãos gelatinosos situados entre a testa e o
nariz, meus olhos, para ser mais objetivo. André olhou bem nos meus olhos, como
havia muito não fazia, e fiquei surpreso e tive vontade de dizer ao médico de
plantão que era tudo um engano, que André estava muito bem, pois se até me
olhava nos olhos como se me visse, pois se recuperara aquela expressão atenta e
quase amiga do André que eu conhecia e que morava comigo, como se me
compreendesse e tivesse qualquer coisa assim como uma vontade de que tudo desse
certo para mim, sem nenhuma mágoa de que eu o tivesse levado para lá. Como se me
perdoasse, porque a culpa não era minha, que estava lúcido, nem tampouco dele,
que enlouquecera. Quis levá-lo de volta comigo para casa, despi-lo e lambê-lo
como fazia antigamente, mas havia aquele monte de papéis assinados e cheios de
x nos quadradinhos onde estava escrito solteiro, masculino, branco, coisas
assim, os enfermeiros esperando ali do lado, já meio impacientes. Tudo isso me
passou pela cabeça enquanto o olhar de André pousava sobre mim e sua voz dizia:
– Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais[*]
–. Então vim embora. Os enfermeiros seguraram seus braços e o levaram para
dentro. Havia alguns outros loucos espiando pela janela. Eram feios, sujos,
alguns desdentados, as roupas listradinhas, encardidas, fedendo. Pensei que o
médico ia colocar a mão no meu ombro para depois dizer coragem, meu velho, como
tenho visto no cinema. Mas ele não fez nada disso. Baixou a cabeça sobre o
monte de papéis como se eu já não estivesse ali, dei meia-volta sem dizer nada
do que eu queria dizer, que cuidassem bem dele, que não o deixassem subir no
telhado, recortar figurinhas de papel o dia inteiro, ou retirar borboletas do
meio dos cabelos como costumava fazer. Atravessei devagar o pátio cheio de
loucos tristes, hesitei no portão de ferro, depois resolvi voltar a pé para
casa. Era de tardezinha, estava horrível na rua, com todos aqueles automóveis,
aquelas pessoas desvairadas, as calçadas cheias de merda e lixo, eu me sentia
mal e muito culpado. Quis conversar com alguém, mas me afastara tanto de todos
depois que André enlouquecera, e aquele olhar dele estava me rasgando por
dentro, eu tinha a impressão de que o meu próprio olhar tinha se tornado como o
dele, e de repente já não era mais uma impressão. Quando percebi, estava
olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas
sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando
as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes
delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem
lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa,
era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando
tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si
mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão
assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia
vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se
soubesse que eu ousara.
Mas alguma coisa em mim era mais forte que eu, e
não conseguia evitar de ver e sentir atrás e além dos sujos bichos brancos,
então soube que todos eles na rua e na cidade e no país e no mundo inteiro
sabiam que eu estava vendo exatamente daquela maneira, e de repente já não era
mais possível fingir nem fugir nem pedir perdão ou tentar voltar ao olhar
anterior e tive certeza de que eles queriam vingança, e no momento em que tive
certeza disso, comecei a caminhar mais depressa para escapar, e Deus, Deus
estava do meu lado: na esquina havia um ponto de táxi, subi num, mandei tocar
em frente, me joguei contra o banco, fechei os olhos, respirei fundo, enxuguei
na camisa as palmas visguentas das mãos. Depois abri os olhos para observar o
motorista (prudentemente, é claro). Ele me vigiava pelo espelho retrovisor.
Quando percebeu que eu percebia, desviou os olhos e ligou o rádio. No rádio,
uma voz disse assim: Senhoras e senhores, são seis horas da tarde. Apertem os
cintos de segurança e preparem suas mentes para a decolagem. Partiremos em breve
para uma longa viagem sem volta. Atenção, vamos começar a contagem regressiva:
dez-nove-oito-sete-seis-cinco... Antes que dissesse quatro, soube que o
motorista era um deles. Mandei-o parar, paguei e desci. Não sei como, mas
estava justamente em frente à minha casa. Entrei, acendi a luz da sala, sentei
no sofá. A casa quieta sem André. Mesmo com ele ali dentro, nos últimos tempos
a casa era sempre quieta: permanecia em seu quarto, recortando figurinhas de
papel ou encostado na parede, os olhos olhando daquele jeito, ou então em
frente ao espelho, procurando as borboletas que nasciam entre seus cabelos.
Primeiro remexia neles, afastava as mechas, depois localizava a borboleta, exatamente
como um piolho. Num gesto delicado; apanhava-a pelas asas, entre o polegar e o
indicador, e jogava-a pela janela. Essa era das azuis – costumava dizer, ou
essa era das amarelas ou qualquer outra cor. Em seguida saía para o telhado e
ficava repetindo uma porção de coisas que eu não entendia. De vez em quando
aparecia uma borboleta negra. Então tinha violentas crises, assustava-se,
chorava, quebrava coisas, acusava-me. Foi na última borboleta negra que resolvi
levá-lo para o lugar verde, e mais tarde, para o hospício mesmo. Ele quebrou
todos os móveis do quarto, depois tentou morder-me, dizendo que a culpa era
minha, que era eu quem colocava as borboletas negras em seus cabelos, enquanto
dormia. Não era verdade. Enquanto dormia, eu às vezes me aproximava para
observá-lo. Gostava de vê-lo assim, esquecido, os pêlos claros do peito subindo
e descendo sobre o coração. Era quase como o André que eu conhecera antes,
aquele que mordia meu pescoço com fúria nas noites suadas de antigamente. Uma
vez cheguei a passar os dedos nos seus cabelos. Ele despertou bruscamente e me
olhou horrorizado, segurou meu pulso com força e disse que agora eu não poderia
fingir que não era eu, que tinha me surpreendido no momento exato da traição.
Era assim, havia muito tempo, eu estava fatigado e não compreendia mais. Mas
agora a casa estava sem André. Fui até o banheiro atulhado de roupas sujas, a
torneira pingando, a cozinha com a pia transbordando pratos e panelas de muitas
semanas, a janela de cortinas empoeiradas e o cheiro adocicado do lixo pelos
cantos, depois resolvi tomar coragem e ir até o quarto dele. André não estava
lá, claro. Apenas as revistas espalhadas pelo chão, a tesoura, as figurinhas
entre os cacos dos móveis quebrados. Apanhei a tesoura e comecei a recortar
algumas figurinhas. Inventava histórias enquanto recortava, dava-lhes
profissões, passados, presentes, futuros era mais difícil, mas dava-lhes também
dores e alguns sonhos. Foi então que senti qualquer coisa como uma comichão
entre os cabelos. Aproximei-me do espelho, procurei. Era uma borboleta. Das
azuis, verifiquei com alegria. Segurei-a entre o polegar e o indicador e
soltei-a pela janela. Esvoaçou por alguns segundos, numa hesitação perfeitamente
natural, já que nunca antes em sua vida estivera sobre um telhado. Quando
percebi isso, subi na janela e alcancei as telhas para aconselhá-la: – É assim
mesmo – eu disse. – O mundo fora de minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens
e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não se detenha demasiado, pois
correrá o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios
não veem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros
seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-lo: bastará
esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois pousando correrás o risco
de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros
pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te
torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar pra
dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada
pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos
excessivos. Trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas. Pareceu tranquilizada
com meus conselhos, tomou impulso e partiu em direção ao crepúsculo. Quando me
preparava para dar volta e entrar novamente no quarto, percebi que os vizinhos
me observavam. Não dei importância a isso, voltei às figurinhas. E novamente
começou a acontecer a mesma coisa: algo como borbulhar, o espelho, a borboleta
(essa era das roxas), depois a janela, o telhado, os conselhos. E os vizinhos e
as figurinhas outra vez. Assim durante muito tempo. Já não era mais de
tardezinha quando apareceu a primeira borboleta negra. No mesmo momento em que
meu indicador e polegar tocaram suas asinhas viscosas, meu estômago contraiu-se
violentamente, gritei e quebrei o objeto mais próximo. Não sei exatamente o que,
sei apenas do ruído de cacos que fez, o que me deixa supor que se tratasse de
um vaso de louça ou algo assim (creio que foi nesse momento que lembrei daquele
som das noites de antes: as franjas do xale na parede caído sobre as cordas do
violão de André quando rolávamos da cama para o chão). Pretendia quebrar mais
coisas, gritar ainda mais alto, chorar também. Se conseguisse, porque tinha
nojo e nunca mais – quando ouvi um rumor de passos no corredor e diversas
pessoas invadiram o quarto. Acho que meu primeiro olhar para elas foi aquele
que tive antigamente, cheguei a reconhecer alguns dos vizinhos que nos
observavam sempre, o homem do bar da esquina, o jardineiro da casa em frente, o
motorista do táxi, o síndico do edifício ao lado, a puta do chalé branco. Mas
em seguida tudo se alargou e não consegui evitar de vê-las daqueles outros
jeitos, embora não quisesse, e meu jeito de evitar isso era fechar os olhos,
mas quando fechava os olhos ficava olhando pra dentro do meu próprio cérebro – e
só encontrava nele uma infinidade de borboletas negras agitando nervosamente as
asinhas pegajosas, atropelando-se para brotar logo entre os cabelos. Lutei por
algum tempo. Tinha alguma esperança, embora fossem muitas mãos a segurar-me. Ao
amanhecer do dia de hoje fui dominado. Chamaram um táxi e trouxeram-me para cá.
Antes de entrar no táxi tentei sugerir, quem sabe aquele lugar de muito verde,
pessoas amáveis e prestativas, todas distantes, um tanto pálidas, alguns lendo
livros, outros cortando figurinhas. Mas eu sabia que eles não admitiriam: quem
havia visto o que eu via não merecia perdão. Além disso, eu tinha desaprendido
completamente a sua linguagem, a linguagem que também tive antes, e, embora com
algum esforço conseguisse talvez recuperá-la, não valia a pena, era tão mentirosa,
tão cheia de equívocos, cada palavra querendo dizer várias coisas em várias
outras dimensões. Eu agora já não conseguia permanecer em apenas uma dimensão,
como eles, cada palavra se alargava e invadia tantos e tantos reinos que, para
não me perder, preferia ficar calado, atento apenas ao borbulhar das borboletas
dentro do meu cérebro. Quando foram embora, depois de preencherem uma porção de
papéis, olhei para um deles daquele mesmo jeito que André me olhara. E
disse-lhe: – Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Ele
pareceu entender. Vi como se perturbava e tentava dizer, sem conseguir, alguma
coisa para o médico de plantão, observei que baixava os olhos sobre o monte de
papéis e a maneira indecisa com que atravessava o pátio, para depois deter-se
ao portão de ferro, olhando para os lados, depois se foi, a pé. Em seguida os
homens trouxeram-me e enfiaram uma agulha no meu braço. Tentei reagir, mas eram
muito fortes. Um deles ficou de joelhos no meu peito enquanto o outro enfiava a
agulha na veia. Afundei num fundo poço acolchoado de branco. Quando acordei,
André me olhava dum jeito totalmente novo. Quase como o jeito antigo, mas muito
mais intenso e calmo. Como se agora partilhássemos o mesmo reino. André sorriu.
Depois estendeu a mão direita em direção aos meus cabelos, uniu o polegar ao
indicador e, gentilmente, apanhou uma borboleta. Era das verdes. Depois baixou
a cabeça, eu estendi os dedos para seus cabelos e apanhei outra borboleta. Era
das amarelas. Como não havia telhados próximos, esvoaçavam pelo pátio enquanto
falávamos juntos aquelas mesmas coisas, eu para as borboletas dele, ele para as
minhas. Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei uma das
negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas vezes, tirando sangue da carne,
enquanto ele cravava as unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro
desta vez. Dois deles puseram os joelhos sobre nossos peitos, enquanto os
outros dois enfiavam agulhas em nossas veias. Antes de cairmos outra vez no
poço acolchoado de branco, ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender
os dedos para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares unidos, ao mesmo
tempo, com muito cuidado, apanhar cada um uma borboleta. Essa era tão vermelha
que parecia sangrar.
In: Fragmentos: 8
histórias & 1conto inédito. Seleção de Luciano Alabarse. Porto Alegre:
L&PM, 2006, p. 34-42.
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