Para
Mano Bertoni
I
O
envelope não tinha nada de especial. Branco, retangular, seu nome e endereço datilografados
corretamente do lado esquerdo, sem remetente. Guardou-o no bolso até a hora de
dormir, quando, vestindo o pijama (azul, bolinhas brancas), lembrou. Abriu,
então. E leu:
“Seu porco, talvez você pense que
engana muita gente. Mas a mim você nunca enganou. Faz muito tempo que acompanho
suas cachorradas. Hoje é só um primeiro contato. Para avisá-lo que estou de
olho em você. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.
A
esposa ao lado notou a palidez. E ele sufocou um grito, como nos romances. Mas
não era nada, disse, nada, talvez a carne de porco do jantar. Foi à cozinha
tomar sal de frutas. Leu de novo e quebrou o copo sem querer. Voltou para o
quarto, apagou a luz e, no escuro, fumou quatro cigarros antes de conseguir
dormir.
II
Dois
dias depois veio o segundo. Examinando a correspondência do dia localizou o
envelope branco, retangular, nome e endereço datilografados no lado esquerdo,
sem remetente. Pediu um café à secretária, acendeu um cigarro e leu: “Tenho
pensado muito em sua mãe. Não sei se você está lembrado: quando ela teve o
terceiro enfarte e ficou inutilizada você não hesitou em mandá-la para aquele
asilo. Ela não podia falar direito, mas conseguiu pedir que não a enviasse para
lá. Queria morrer em casa. Mas você não suporta a doença e a morte a seu lado
(embora elas estejam dentro de você). Então mandou-a para o asilo e ela morreu
uma semana depois. Por sua culpa. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.
Abriu
a terceira gaveta da escrivaninha e colocou-o junto com o primeiro. Pediu outro
café, acendeu outro cigarro. Suspendeu a reunião daquele dia. Parado na janela,
fumando sem parar, olhava a cidade e pensava coisas assim: “Mas era um asilo
ótimo, mandei construir um túmulo todo de mármore, teve mais de dez coroas de
flores, ela já estava mesmo muito velha”.
III
Alguns
dias depois, outro. Com o tempo, começou a se estabelecer um ritmo. Chegavam às
terças e quintas, invariavelmente. O terceiro, que ele abriu com dedos
trêmulos, dizia:
“Você lembra da Clélia? Tinha só
dezesseis anos quando você a empregou como secretária. Cabelo claro, fino,
olhos assustados. Logo vieram as caronas até a casa em Sarandi, os jantares à
luz de velas, depois os hoteizinhos em Ipanema, um pequeno apartamento no
centro e a gravidez. Ela era corajosa, queria ter a criança, não se importava
de ser mãe solteira. Você teve medo, não podia se comprometer. Semana que vem
faz dois anos que ela morreu na mesa de aborto”.
IV
Fumava
cada vez mais, sobretudo às terças e quintas. As cartas se acumulavam na
terceira gaveta da escrivaninha:
“É o Hélio? Lembra do Hélio, seu
ex-sócio? Desde que você conseguiu a maior parte das ações com aquele golpe
sujo e o reduziu a nada dentro da companhia, ele começou a beber, tentou o
suicídio e esteve internado três vezes numa clínica psiquiátrica.”
E:
“Então você se sentiu orgulhoso de si
mesmo no jantar que os funcionários lhe ofereceram no sábado passado? Talvez
não se sentisse tanto se pudesse ver no espelho a sua barriga gorda e os seus
olhinhos de cobra no decote de dona Leda. Depois que você se foi, ela riu
durante meia hora e foi para a cama com o Jorginho do departamento de compras.”
E:
“E o fracasso sexual com sua mulher no
domingo? Será que minhas cartas o têm perturbado tanto? Ou será apenas que você
está ficando velho e brocha?”
V
Com
cuidado, a mulher insinuou que devia procurar um psiquiatra. Ele desconversou,
falou no tempo e convidou-a para ir ao cinema. A terceira gaveta transbordava.
Além das terças e quintas, depois de um mês as cartas passaram a vir também aos
sábados. E, depois de dois meses, todos os dias. Tentava controlar-se, pensou
em não abrir mais os envelopes. Chegou a rasgar um deles e jogar os pedaços no
cesto de papéis. Depois viu-se de quatro, juntando pedacinhos como num
quebra-cabeça, para decifrar: “Você tem observado seu filho Luiz Carlos? Já
reparou na maneira de ele cruzar as pernas? E o que me diz do jeito como
penteia o cabelo? Não é exatamente o que se poderia chamar um tipo viril.
Parece que faz questão de cada vez mais parecer-se com sua mulher. Talvez tenha
nojo de parecer-se com você”.
VI
“Há quanto tempo você não tem um bom
orgasmo?”
“E aquele seu pesadelo, tem voltado?
Você está completamente nu sobre uma plataforma no meio da praça. A multidão em
volta ri das suas banhas, da sua bunda mole, obrigam-no a dançar com um colar
de flores no pescoço e jogam-lhe ovos e tomates podres.”
“Uma farsa, essa sua vida, O seu
casamento, a sua casa em Torres, a sua profissão — uma farsa. E o pior é que
você já não consegue nem fingir que acredita nela.”
“Pergunte à sua mulher sobre um certo
Antônio Carlos. E, se ela lhe disser que a mancha roxa no seio foi uma batida,
não acredite.”
“Quando criança você não queria ser
marinheiro?”
VII
Suportou
seis meses. Uma tarde, pediu à secretária um envelope branco, colocou papel na
máquina e escreveu: “Seu verme, ao receber esta carta amanhã, reconhecerá que
venci. Ao chegar em casa, apanhará o revólver na mesinha-de-cabeceira e disparará
um tiro contra o céu da boca”. Acendeu um cigarro. Depois bateu devagar, letra
por letra: “Cordialmente, seu Inimigo Secreto”. Datilografou o próprio nome e
endereço na parte esquerda do envelope, sem remetente. Chamou a secretária e pediu
que colocasse no correio. Como vinha fazendo nos últimos seis meses.
In:
Fragmentos: oito histórias e um
conto inédito. Seleção de Luciano Alabarse. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.
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