Para Carlos Augusto Crusius
Foi de repente que o cigarro queimou os cabelos dele. Levantamos os
olhos, nos encaramos tensos, quase em ódio, quase em amor, naquela repressão à
beira de alguma coisa que poderia conduzir a qualquer gesto, mesmo ao
homicídio. Mas sorrimos, e foi depois que tudo quebrou. Jamais voltamos à
entrega mesma de antes e à ausência de solicitações e à aceitação sem
barreiras. Foi de um de nós que partiu a morte, ou ela já nascia involuntária
como a madrugada por trás dos vidros?
Olha em torno, o vazio do olhar fundindo-se com o vazio da sala. As
pessoas, máscaras penduradas em corpos, o colorido das roupas gritando alto
como se pudesse emprestar alguma individualidade ao que não era sequer sombra.
O ar pesado de fumaça dos cigarros. Aperta nas mãos a caixa de fósforos vazia.
Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado
roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah
como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura.
Não consegue fixar-se em nada. As faces inexpressivas, as paredes brancas onde
não há sequer quadros, a toalha vermelha da mesa - tudo em ordem atrás da
aparente desordem. Uma ordem interna, imutável, solidificada. Quase odeia os
risos que brotam súbitos dos cantos. Por que lhe é negada essa possibilidade de
entrega ao que está sendo? Por que a espera, se a espera não o cabe mais? Só o
ar denso, azulado de cigarros fumados. E o vazio da caixa de fósforos. Examina
o relógio, mas não vê as horas, não vê nada. Seu pensamento lateja preso numa
imagem determinada. Quase não pode projetá-la para fora de si, concretizá-la em
visão. E o vê abrindo lento a porta, investigando em tomo, de repente erguendo
as sobrancelhas num gesto de quem reconhece. Então se encaminharia devagarinho
até a mesa, vestido de azul - não sabe por que, nunca o viu de azul, não sabe
mesmo se existe aquele casaco jogado sobre os ombros. Só vê uma mancha azul e o
rosto destacado em indagação. Os olhos. Como se dissessem: fala. Falaria? O
quê? A porta se abre, cortando o pensamento. Dobra-se em ânsia, quase vira os
copos: uma mulher de verde, nariz grande, ar de psicóloga em busca de material.
Vira para a outra mesa, pede um fósforo.
Eu não procurei, não insisti. Contive tudo dentro de mim até que
houvesse um movimento qualquer de aceitação. Quando houve, cedi. A sua cabeça
pesava no meu braço. Ele estava bêbado? Estava cansado? Eu era apenas um braço
onde ele debruçava a sua exaustão? Ele se indagava se eu o recebia como
receberia qualquer cansaço humano ou sabia que eu estava tenso, na espreita,
dilacerado? Os outros dois dançavam no meio da sala. Não viam ou não queria,
ver ou não havia nada para ver? O corpo de Lídia era agudo como uma flecha.
Aquele contato era premeditado ou ocasional?
As indagações pesavam sem resposta, e numa lucidez desesperada eu
num repente assimilava todos os detalhes, dissecava o que acontecia em torno
como se tivesse mil olhos, envelhecia como a noite lá fora, virando madrugada,
a luz fraca - eu tudo compreendia, tudo sabia. Menos aquela cabeça pesando no
meu braço. Que espécie de busca o levara àquele gesto? Me quebrava por dentro,
a cabeça afundando cada vez mais no meu corpo, eu negava, fugia, tenso, o
cigarro morto nas mãos, a cinza caindo sobre o tapete.
Eles dançavam há muito tempo, muito tempo. E eu morria. A cabeça
dele se movimentava, sua boca esmagava meu braço. Fechei os olhos e afundei os
dedos nos seus cabelos.
Ergue-se de um salto ouvindo o toque do telefone. Espreita a
secretária levando o fone ao ouvido. Lentamente, acompanha os olhos da
secretária vagando em tomo, inexpressivos. Depois ela chama por outro nome. Não
o seu. O tampo verde da mesa recebe os seus braços e o peso da cabeça. Abre uma
gaveta à toa, papéis misturados, envelopes, cartas que não dizem nada, não
trazem nada.
Espalma as mãos sobre o teclado da máquina. Bate, leve. Podia
escrever um poema. Não. Recusa mesmo essa espécie de alívio. Não quer a cor.
Prefere o dilaceramento cada vez mais intenso, mais insolucionado. Precisa
sofrer e morrer muitas vezes por dia para sentir-se vivo. Chegara à constatação
de que era só, Único, e que devia bastar-se a si mesmo, e justamente por isso precisava
de uma outra pessoa. Os grãos de areia nunca se tocam. Mesmo quando juntos há
entre eles uma espécie de carapaça que não os deixa tocarem se. Jamais um
núcleo toca outro núcleo. A terra é azul, os olhos eram azuis, ele vestiria
azul -dentro de muitos azuis concêntricos, ele voltaria a se perder. Um certo
prazer em saber-se assim solto, assim perdido entre as coisas, assim contendo
um mal-estar que ninguém saberia de quê. O tic-tac das máquinas de escrever. O
sol coado pelas persianas. Uma brecha de luz em cima da mesa. A sombra de seu
perfil na parede. Amassa várias folhas de papel, joga-as no chão, gesto brusco.
Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas
vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda. Prefere
jogar-se numa atitude que seria teatral, não fosse verdadeira, sentir os
espinhos rasgando carne, as pedras entrando no corpo, o rosto espatifado contra
o fim desconhecido. Precisa ir até o fundo.
Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pelos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.
Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pelos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.
Foi na segunda vez que sentei no chão. Carlos dormia. Lídia
desenhava. O copo estava quase vazio. Foi então que ele sentou perto de mim. As
mãos sustentavam a cabeça. A posição devia ser incômoda - o corpo apoiado em
meio sobre o assoalho, a cabeça no ar, os pés no ar. Eu tremia? Não. Sentia
minhas próprias unhas furando as palmas das mãos, mas meu corpo estava seguro,
em riste. O primeiro toque foi dele. As mãos comprimiram minhas pernas. Depois,
uma das mãos libertou-se avançando em forma de ternura. Nos seus cabelos, as
minhas mãos iam e vinham, adivinhando a tessitura. Era noite, ainda. O ritual
já fora cumprido. Puxou-me para si, os nossos corpos opostos no assoalho, duas
lanças apontando uma para a outra. E de repente nos ferimos. Com a boca. Senti
seus lábios nos meus, os dentes se chocando, as mãos que seguravam meu rosto,
investigavam meus traços, eu nascia por dentro, quase gritava, tentávamos
desvendar um ao outro, mas não íamos além da tentativa, que já se fazia
angústia em suas mãos como espinhos, subindo por meu corpo inteiro, busca
tensa. Não, não era amor, não foi amor. Tudo explodia num plano muito mais
alto, muito mais intenso. Nos desvendávamos com a fúria dos que antecipadamente
sabem que não vão conseguir jamais.
Alguma coisa morria em mim naquela procura de meta inatingível,
desconhecida - e num tempo mesmo algo nascia de repente, puxado não sei de que
desvão, de que sombra oculta, de que arca fechada, coberta de poeira, abriam-se
portas em mim, janelas quebravam, estilhaços saltavam, pedaços de vidro me
cortavam sem piedade, já não via a noite, o dia, o tempo, o espaço onde
estávamos, vagávamos no cosmos ou estávamos presos numa esfera conhecida? eu
não sabia, eu morria, eu nascia sucessivamente, em desespero, eu compreendia
súbito. Não, não era amor. Era terror.
Desce do ônibus, alcança a escada rolante. O dia morre no fim da
avenida que se espalha nas nascentes da galeria. Os degraus subindo em lenta
ascensão. Vai além deles, corre vencendo a máquina. A rua apinhada de gente e
carros. As buzinas em loucura. Os anúncios luminosos começam a acender,
indecisos. As luzes dos postes. Atravessa a rua correndo. O automóvel freia. Pessoas
param, suspensas, atentas a um acontecimento que quebraria súbito o estático do
momento. Junta os livros no chão, alcança a calçada, quase corre, esbarra, vira
a esquina, ofega, a subida põe gotas de suor no seu rosto. Entra no edifício. O
zelador lê uma fotonovela. Alguma coisa para mim? pergunta. Quê? Alguma coisa
para mim. Não pergunta mais, afirma, sabe que tem. Ah sim, uma carta. Estende o
envelope pesado de que angústia, de que explicação, de que riso talvez? Olha o
remetente, amassa em desalento o apoio que não quer, que não busca, que não
espera.
Ninguém me procurou? Não. Ninguém. Aperta o botão do elevador. Pelo
corredor vai desabotoando a camisa, tira o paletó, a gravata, afrouxa o cinto.
Abre a porta. Espia, os olhos meio estrábicos no medo de ver o bilhete que não
existe sobre o assoalho vazio. Joga as roupas numa cadeira. Apóia o corpo na
janela. Acende um cigarro. Espia a rua, as pessoas, a noite que se cumpre mais
uma vez. Liga o rádio. Não ouve a música. Os olhos se turvam, por dentro uma
coisa aperta num jeito de quem estrangula. Não pode gritar. As paredes se
dobram, tremem, prenhes de ironia.
Suspira. Exausto.
Abre devagar o armário do banheiro. O espelho reflete uma face de
barba não feita, olheiras fundas, leve contração nas sobrancelhas. Abre o
pacote de lâminas, retira uma, vai amassando aos poucos o papel. Senta na beira
da cama, o aço nas mãos.
Examina a cicatriz já antiga, um simples fio no pulso. Aperta.
Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz,
lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos
de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela.
Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra
entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra
os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se
curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça
afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido
queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se
enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não
formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo
apenas para dentro.
In: Inventário do Ir-remediável. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1995.
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