(Uma
história positiva, para ser lida ao som de Contigo en la distancia)
Foi
escrita em fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre.
Há pouco a dizer sobre ela, ainda está muito próxima para eu tratá-la com
frieza e distanciamento. Talvez seja um tanto cifrada, mas para um bom leitor
certo mistério nunca impede a compreensão.
Porque o
Eterno, teu Deus, te há abençoado em toda a obra das tuas mãos; soube da tua
longa caminhada por este grande deserto; há já quarenta anos que o Eterno, teu
Deus, está contigo e nada te tem faltado.
Deuteronômio, II, 7
Lázaro
Naquela
manhã de agosto, era tarde demais. Foi a primeira coisa que ele pensou ao cruzar
os portões do hospital apoiado náufrago nos ombros dos dois amigos. Anjos da guarda,
um de cada lado. Enumerou: tarde demais para a alegria, tarde demais para o amor,
para a saúde, para a própria vida, repetia e repetia para dentro sem dizer
nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro lado da
avenida Dr. Arnaldo. Tentando não ver os túmulos, mas sim a vida louca dos
túneis e viadutos desaguando na Paulista, experimentava um riso novo. Pé ante
pé, um pouco para não assustar os amigos, um pouco porque não deixava de ser
engraçado estar de volta à vertigem metálica daquela cidade à qual, há mais de
mês, deixara de pertencer.
Vamos
comer sushi num japonês que você gosta, disse a moça do lado esquerdo. E ele
riu. Depois vamos ao cinema ver o Tom Hanks que você adora, disse o rapaz do
lado direito. E ele tornou a rir. Riram os três, um tanto sem graça, porque a
partir daquela manhã de agosto, embora os três e todos os outros que já sabiam
ou viriam a saber, pois ele tinha o orgulho de nada esconder, tentassem suaves
disfarçar, todos sabiam que ele sabia que tinha ficado tarde demais. Para a
alegria, repetia, a saúde, a própria vida.
Sobretudo
para o amor, suspirava. Discreto, pudico, conformado. Nunca-mais o amor era o
que mais doía, e de todas as tantas dores, essa a única que jamais confessaria.
Primavera
Mas
quase nem doeu, meses seguintes. Pois veio a primavera e trouxe tantos roxos e
amarelos para a copa dos jacarandás, tantos reflexos azuis e prata e ouro na
superfície das águas do rio, tanto movimento nas caras das pessoas do Outro
Lado com suas deliciosas histórias de vivas desimportâncias, e formas pelas
nuvens — um dia, um anjo —, nas sombras do jardim pela tardinha — outro dia,
duas borboletas fazendo amor pousadas na sua coxa. Coxas Motel, ele riu.
Nem
sempre ria. Pois havia também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens,
palavras fugindo, suspeitas no céu da boca, terror suado estrangulando as
noites e olhos baixos no espelho a cada manhã, para não ver Caim estampado na
própria cara. Mas havia ainda as doçuras alheias feito uma saudade prévia, pois
todos sabiam que era tarde demais, e golpes de fé irracional em algum milagre
de science-ficcion, por vezes avisos mágicos nas minúsculas plumas coloridas
caídas pelos cantos da casa. E principalmente, manhãs. Que já não eram de
agosto, mas de setembro e depois outubro e assim por diante até o janeiro do
novo ano que, em agosto, nem se atrevera a supor.
Estou
forte, descobriu certo dia, verão pleno na cidade ao sul para onde mudara, deserta
e crestada pelo sol e branca e ardente como uma vila mediterrânea de Theos Angelopoulos.
E decidiu: vou viajar. Porque não morri, porque é verão, porque é tarde demais
e eu quero ver, rever, transver, milver tudo que não vi e ainda mais do que já
vi, como um danado, quero ver feito Pessoa, que também morreu sem encontrar.
Maldito e solitário, decidiu ousado: vou viajar.
Jade
Para
a costa, perto do mar, onde as águas verdes pareciam jade cintilando no horizonte,
como se fizesse parte de um cartão-postal kitsch, à sombra de uma palmeira ele bebia
água de coco sob o chapéu de palha ao sol das sete da manhã, catando conchas coloridas
no debrum da espuma das ondas. Ao pôr-do-sol atrevia-se às vezes a uma cerveja,
olhando rapazes para sempre inatingíveis jogando futebol na areia.
Tarde
demais, nunca esquecia. E respirava lento, medido, economizando sua quota kármica
de prana ao estufar estômago-costelas-pulmões, nessa ordem, erguendo suave os ombros
para depois expirar sorrindo, mini-samadhi. Devocional, búdico. Pois se ficara mesmo
tarde demais para todas as coisas dos Viventes Inconscientes, como passara a chamar
às Pessoas do Outro Lado — apenas para si mesmo, não queria parecer arrogante —,
pois se ficara mesmo assim tragicamente tarde, acendia um cigarro culpado e,
fodam-se, com toda a arrogância constatava: se era tarde demais, poderia também
ser cedo demais, você não acha? perguntava sem fôlego para ninguém.
Navios
deslizavam na linha verde do horizonte. Ele filosofava: se tarde demais era depois
da hora exata, cedo demais seria antes dessa mesma hora. Estava portanto
cravado nessa hora, a exata, entre antes-depois, noite-dia, morte-vida e isso
era tudo e em sendo tudo não era boa nem má aquela hora, mas exata e justa
apenas tudo que tinha. Entre este lado e o outro, isto e aquilo, um coco na mão
esquerda e um cigarro na direita, sorria. Apoiado em coisas fugazes e ferozes,
anjos e cães de guarda.
Nada
mau para um ressuscitado, considerou. E logo depois, insensato: estou feliz. Era
verdade. Ou quase, pois:
Anunciação
Então
chegou o outro.
Primeiro
por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viajando-e-recomendara-que-olhasse-por-ele.
Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante
ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase
expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular
no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A
invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do
Outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa
que os Sórdidos Preconceituosos, compreende?
Mas
havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de
gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que
não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto
desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse
água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando
bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios
pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem
eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo
crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete
vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
Oriente
Soube
no segundo em que o viu. Quem sabe a pele morena, talvez os olhos chineses?
Curioso, certo ar cigano, seria esse nariz persa?
Talvez
tanta coisa quem sabe maybe peut-être
magari enquanto rodavam de carro ouvindo fitas nervosas mas você tem esta
eu não consigo acreditar que outra criatura além de mim na galáxia: você é
louco, garoto, juro que nunca pensei.
As
janelas abertas para a brisa de quase fevereiro faziam esvoaçar os cabelos de
um só, que os dele tinham ficado ralos desde agosto. Pêlos dos braços que se
eriçavam — maresia, magnetismos — e pelas coxas nuas nas bermudas brancas
músculos tremiam em câimbras arfantes aos toques ocasionais de um, de outro. Um
tanto por acaso, assim as mãos tateando possíveis rejeições, depois mais
seguras, cobras enleadas, choque de pupilas com duração de big boom em um suspiro — e de repente meu santo antônio um beijo de
língua morna molhado na boca até o céu e quase a garganta alagados pelos joelhos
na chuva tropical de Botafogo.
Mas
se o outro, cuernos, se o outro, como todos, sabia perfeitamente de sua situação:
como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser amigos simplesmente, cantarolou
distraído. Piedade, suicídio, sedução, hot
voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornara-se tão impuro que sequer os
leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de todos os cães do
beco mais sujo de Nova Delhi. Ay! gemeu sedento e andaluz no deserto rosso da
cidade do centro.
Soneto
Acordou
em estado de encantamento. Noutra cidade, ainda mais ao norte, para onde fugira
depois daquele beijo. Só que quase não conseguia mais olhar para fora. Como antigamente,
como quando fazia parte da roda, como quando estava realmente vivo — mas se
porra ainda não morri caralho, quase gritava. E talvez não fosse tarde demais, afinal,
pois começou desesperadamente outra vez a ter essa coisa sôfrega: a esperança.
Como
se não bastasse, veio também o desejo. Desejo sangrento de bicho vivo pela
carne de outro bicho vivo também. Sossega, dizia insone, abusando de lexotans,
duchas mornas, shiatsus. Esquece, renuncia, baby: esses quindins já não são para
o teu bico, meu pimpolho...
Meio
fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se disfarçado no espelho
do balido hotel. As marcas tinham
desaparecido. Um tanto magro, biên-sure,
considerou, mas pas grave, mon chér.
Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não, Tony
Perkins melhor não — enumerou, ele era meio sixties.
Enfim, quem não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? Mas o outro
sabia. E por dentro do encantamento, da esperança e do desejo, entremeado
começou a ter pena do outro, mas isso não era justo, e tentou o ódio. Ódio
experimental, claro, pois embora do bem, ele tinha Ogum de lança em riste na
frente.
Aos
berros no chuveiro: se você sabe seu veado o que pretende afinal com tanta sedução?
Sai de mim, me deixa em paz, você arruinou a minha vida. Começou a cantar uma
velha canção de Nara Leão que sempre o fazia chorar, desta vez mais que sempre,
por que desceste ao meu porão sombrio, por que me descobriste no abandono, por
que não me deixaste adormecido? Mas faltava água na cidade de lá, e ensaboado e
seco ele parou de cantar.
Fuga
Porque
não suportava mais todas aquelas coisas por dentro e ainda por cima o quase-amor
e a confusão e o medo puro, ele voltou à cidade do centro. Marcou a passagem de
volta para a sua cidade ao sul em uma semana. Continuava verão, quase não havia
lugares e todo mundo se movia sem parar dos mares para as montanhas, do norte para
o sul e o contrário o tempo todo. Fatídica, pois, a volta. Em sete dias. Só no
terceiro, o das árvores que dão frutos, telefonou.
O
outro, outra vez. A voz do outro, a respiração do outro, a saudade do outro, o silêncio
do outro. Por mais três dias então, cada um em uma ponta da cidade, arquitetaram
fugas inverossímeis. O trânsito, a chuva, o calor, o sono, o cansaço. O medo,
não. O medo não diziam. Deixavam-se recados truncados pelas máquinas, ao reconhecer
a voz um do outro atendiam súbitos em pleno bip ou deixavam o telefone tocar e
tocar sem atender, as vozes se perdendo nos primeiros graus de Aquário.
Sim,
afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter.
Ou
querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os
teres de cada um, afligia tanto.
Sonho
Teve
um sonho, então. O primeiro que conseguia lembrar desde agosto.
Chegava
num bar com mesas na calçada. Ele morava num apartamento em cima daquele bar,
no mesmo prédio. Estava aflito, esperava um recado, carta, bilhete ou qualquer
presença urgente do outro. Sorrindo na porta do bar, um rapaz o cumprimentou.
Não o conhecia, mas cumprimentou de volta, mais apressado que intrigado. Subia
escadas correndo, ofegante abria a porta. Nenhum bilhete no chão. Na secretária,
nenhum recado na fita. Olhou o relógio, tarde demais e não viera. Mas de repente
lembrou que aquele rapaz que o cumprimentara sorrindo na porta do bar lá embaixo,
que aquele rapaz moreno que ele não reconhecera — aquele rapaz era o outro.
Não
vejo o amor, descobriu acordando: desvio dele e caio de boca na rejeição.
Capitulação
Como
não era mais possível adiar, sob risco de parecerem no mínimo maleducados — e
eram, ambos, de fino trato — na véspera da partida ele acendeu uma vela para
Jung, outra para Oxum. E foi.
Feito
donzela, tremia ao descer do táxi, mas umas adrenalinas viris corriam nos músculos
e umas endorfinas doidas no cérebro avisavam: voltara, o desejo que tanto latejara
antes e tão loucamente que, por causa dele, ficara assim. Nosferátu, desde
agosto, aquela espada suspensa, pescoço na guilhotina, um homem-bomba cujo
lacre ninguém se atrevia a quebrar.
Espelho
Na
sala clara e limpa começou a falar sem parar sobre a outra cidade mais ao
norte, o jade do mar de lá, e daquela outra mais ao sul, o túnel roxo dos
jacarandás. De tudo que não estava ali na sala clara e limpa no centro da qual,
parado, o outro o olhava, e de tudo que fora antes e o que seria depois daquele
momento, ele falou. Mas em nenhum momento daquele momento, hora exata, em que
ele e o outro se olhavam frente a frente.
Amanhã
é dia de Iemanjá — ele disse por fim exausto.
O
outro convidou:
—
Senta
aqui do meu lado. Ele sentou. O outro perguntou:
—
Nosso
amigo te contou?
—
O
quê?
O
outro pegou na mão dele. A palma era lisa, fina, leve, fresca.
—
Que
eu também. Ele não entendia.
—
Que
eu também — o outro repetiu.
O
ruído dos carros nas curvas de Ipanema, a lua nova sobre a lagoa. E feito um choque
elétrico, raio de Iansã, de repente entendeu. Tudo.
—
Você
também — disse, branco.
—
Sim
— o outro disse sim.
Valsa
Seminus
viraram noite espalhando histórias desde a infância sobre a cama, entre leques,
cascas de amendoim, latas de gatorade, mapas astrais e arcanos do Tarot,
ouvindo Ney Matogrosso gemer uma história fatigada e triste sobre um viajante
por alguma casa, pássaros de asas renovadas, reis destronados da imensa
covardia. Eu era gordo, contou um. Eu era feio, disse outro. Morei em Paris,
contou um. Vivi em Nova York, disse outro. Adoro manga, odeio cebola. Coisas
assim, eles falaram até as cinco.
Às
vezes aconteciam coisas malucas, como a ponta do pé de um escorregar para tão
dentro e fundo da manga da camiseta do outro que um dedo alerta roçava súbito
um mamilo duro, ou a cabeça de um descansava suada por um segundo na curva do
ombro do outro, farejando almíscar. Que o outro quase morrera, antes mesmo
dele, num agosto anterior talvez de abril, e desde então pensava que: era tarde
demais para a alegria, para a saúde, para a própria vida e, sobretudo, ai, para
o amor. Dividia-se entre natações, vitaminas, trabalho, sono e punhetas loucas
para não enlouquecer de tesão e de terror. Os pulmões, falaram, o coração. Retrovírus,
Plutão em Sagitário, alcaçuz, zidovudina e Rá!
Quando
saíram para jantar juntos ao ar livre, não se importaram que os outros olhassem
— de vários pontos de vista, de vários lados de lá — para as suas quatro mãos por
vezes dadas sobre a toalha xadrez azul e branco. Belos, inacessíveis como dois príncipes
amaldiçoados e por isso mesmo ainda mais nobres.
Finais
Quase
amanhecia quando trocaram um abraço demorado dentro do carro que só faltava ser
Simca. Tão fifties, riram. Na manhã
de Iemanjá, ele jogou rosas brancas na sétima onda, depois partiu sozinho. Não
fizeram planos.
Talvez
um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez
trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por
sedex, que ambos eram meio bruxos, meio ciganos, assim meio babalaôs. Talvez
ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso,
o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos,
talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem
juntos para Paris, por exemplo, Praga, Pittsburg ou Creta. Talvez um se matasse,
o outro negativasse. Sequestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem
sabe.
Talvez
tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no início da
não-morte dos dois.
Bolero
Mas
combinaram:
Quatro
noites antes, quatro depois do plenilúnio, cada um em sua cidade, em hora determinada,
abrem as janelas de seus quartos de solteiros, apagam as luzes e abraçados em
si mesmos, sozinhos no escuro, dançam boleros tão apertados que seus suores se misturam,
seus cheiros se confundem, suas febres se somam em quase noventa graus, latejando
duro entre as coxas um do outro.
Lentos
boleros que mais parecem mantras. Mais índia do que Caribe. Pérsia, quem sabe,
budismo hebraico em celta e yorubá. Ou meramente Acapulco, girando num embrujo
de maraca y bongô.
Desde
então, mesmo quando chove ou o céu tem nuvens, sabem sempre quando a lua é
cheia. E quando míngua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia
outra vez e assim por todos os séculos e séculos porque é assim que é e sempre
foi e será, se Deus quiser e os anjos disserem Amém. E dizem, vão dizer, estão
dizendo, já disseram.
In: Caio 3D: O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
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