— Olha,
antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas
coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis
de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como
serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo,
e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como
você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem
a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos,
porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos
apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero
dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável,
não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que
não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo,
você está acompanhando o meu raciocínio? falava do mais fundo, desse que existe
em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs,
não, não sei por que todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha
pensando nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existe coisas
que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo,
nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito,
ou melhor, pensei sim, não, pensar propriamente não, mas eu sabia, é verdade
que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além de nossas mãos dadas, dos
nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles
silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para
observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite,
você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você
sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu
não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era
capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais
fundo, de não sentir medo desse mais fundo, você riu porque eu dizia que não
era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma
coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito
porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas
coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que quero dizer é
que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por
isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa da garganta que falo, é
de uma outra, de dentro, entende? por favor, não ria dessa maneira nem fique
consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que
o ônibus parta que você cresceu em mim dum jeito completamente insuspeitado,
assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver
nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no
máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas
coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa
coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e
pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você
crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno
vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro
que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora
eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que
estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser
muito tarde, daqui a pouco não vai ser mais possível, e se eu não disser tudo
não poderei nem dizer nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas
as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é
bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não
sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar
qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te
dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não
importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor, não é? pois isso não
importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía
sozinho, pensando numa porção de coisas que queria te dizer depois, pensando
também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que
precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente
terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei,
disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para
ouvi-las, disponível em relação a quê? não sei, não me interrompa agora que
estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? sabe, eu me
perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo
que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas
uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria
ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no
fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir
ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? dolorido-colorido, estou
repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que dou um
cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não
devia fumar tanto, é, eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa
tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? eu estava
dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? ah: sabe, entre duas pessoas
essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse
intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você
não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da
minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada,
fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava
qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar
definidamente em nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto
daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque
eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez
descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas essas
coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você
não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também
gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é
fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando
descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que
muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo
menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação
idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do
lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o
ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer
tudo numa só frase, você vai ..............................................................................................................................................................................................................................................................................................
sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um
casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir
eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? escuta, não
fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco
mais, depois você arruma as malas e as bolsas, fica tranquila, esse velho não
vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e
exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo
suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? eu preciso de muito
silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te
dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.
In: O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2001.
* Imagem do filme Breve encontro (1945), de David Lean.
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