Em
memória de Paulo Yutaka
Entre
1977, quando foi escrito, e 1987, este texto passou por várias versões. Três
delas chegaram a ser publicadas (na extinta revista mineira Inéditos; no caderno Cultura, de Zero Hora, e no suplemento literário de A
Tribuna da Imprensa). Alguns
trechos também foram utilizados por Luciano Alabarse num espetáculo teatral.
Mas nunca consegui senti-lo pronto e por isso mesmo também nunca o incluí em
livro. Continuo tendo a mesma sensação. Mas talvez o jeito meio sem jeito
destes pedaços mais parecidos com fragmentos de cartas ou diário íntimo afinal
seja a sua própria forma informe e inacabada.
Te
amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres;
como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras,
a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia,
te amo ainda que isso te fulmine
ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.
Hilda Hilst, Lucas, Naim
como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras,
a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia,
te amo ainda que isso te fulmine
ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.
Hilda Hilst, Lucas, Naim
Desculpa, digo,
mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei
dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me
entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o
braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando
nesta janela, já dissemos tudo que pode ser dito entre duas pessoas que estão
tentando se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos
compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta dos meus dedos,
tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que
conseguimos, e agora.
Não diz nada, você
não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco
despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois
pedidos. Pedi para saber tocá-lo. Você não me conta seus desejos. Sorri com os
olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá me dizer:
não. Há uma espécie de heroísmo então quando estendo o braço, alongo as mãos,
abro os dedos e brota. Toco. Perto da minha a boca se entreabre lenta, úmida,
cigarro, chiclete, conhaque, vermelha, os dentes se chocam, leve ruído, as
línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo.
Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo do
meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos.
Pensei em você.
Eram exatamente três da tarde quando pensei em você. Sei porque sacudi a cabeça
como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei
o digital no meio da avenida.
Corre, corre. O
número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim
destes dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de
trânsito, as pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim
destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa
e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça
confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do
teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus
braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos
interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de
escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você
me aperta e você me leva para Creta, Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me
aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O telefone toca três
vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois do bip que eu ligo
assim que puder, ok?
O cheiro
do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo,
cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos para
naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos,
sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito. Gramados batidos de sol, poços
claros. Alguma coisa então pára, todas as coisas param. Os automóveis nas ruas,
os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos
ver aqui do fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia-noite
em ponto. Quero fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar
assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de
ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse
jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar
de mim isso que não está completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou
só poeira, me espalho em grãos invisíveis pelos quatro cantos do quarto. Fico
noite, fico dia. Fico farpa, sede, garra, prego. Fico tosco e você se assusta
com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste
cruzamento onde viemos dar.
A cidade
está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre,
você sabe. Como posso gostar limpo de você no meio desse doente podre louco?
Urbanóides cortam sempre meu caminho à procura de cigarros, fósforos, sexo,
dinheiro, palavras e necessidades obscuras que não chego a decifrar em seus
olhos semafóricos. Tenho pressa, não podemos perder tempo. Como chamar agora a
essa meia dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade da peste? (Amor,
amor certamente não.) Como evitaremos que nosso encontro se decomponha,
corrompa e apodreça junto com o louco, o doente, o podre? Não evitaremos. Pois
a cidade está podre, você sabe. Mas a cidade está louca, você sabe. Sim, a
cidade está doente, você sabe. E o vírus caminha em nossas veias, companheiro.
Fala, fala, fala.
Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no que diz. Apenas me
deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia monótona angustiada
perplexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos aonde ir, nunca tivemos
aonde ir. Um nojo, vezenquando me dá um asco — nojo é culpa, nojo é moral —
você se sente sórdido, baby? — eu tenho medo, não quero correr riscos — mas
agora só existe um jeito e esse jeito é correr o risco — não é mais possível —
vamos parar por aqui — quero acordar cedo, fazer cooper no parque, parar de
beber, parar de fumar, parar de sentir — estou muito cansado
— não faz assim, não diz assim — é muito pouco — não vai dar certo — anormal, eu tenho medo — medo é culpa, medo é moral — não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo.
— não faz assim, não diz assim — é muito pouco — não vai dar certo — anormal, eu tenho medo — medo é culpa, medo é moral — não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo.
Eu quero o risco,
não digo. Nem que seja a morte.
Cachorro sem dono,
contaminação. Sagui no ombro, sarna. Até quando esses remendos inventados
resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso encontro? Como se
lutássemos — só nós dois, sós os dois, sóis os dois — contra dois mil anos
amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de
lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que
nunca tiveram aonde ir.
Chega em mim sem
medo, toca no meu ombro, olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois
me diz: — “Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como está. Feche as
portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você
me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, o resto são os
restos. E não importam”. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus
versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre?
Não importa, não importa. Largue tudo. Venha comigo para qualquer outro lugar.
Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora, já. Peço e peço e não digo nada
mas peço e peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você não diz nada. Você
não me vê por trás do meu olho que vê. Você não me escuta por trás da minha
boca que pede sem dizer, e eu bem sei. Você planeja partir para um país
distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um
desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em abril,
dirá, abril ou maio. Ou setembro, outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz,
já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.
Pelas escadarias
da avenida deserta, lata de coca- cola largada na porta da igreja, aqui parece
que o tempo não passou, quero te mostrar um vitral, esta sacada, aquele balcão
como os de Lorca, entremeado de rosas, quero dividir meu olhar, desaprendi de
ver sozinho e agora que tudo perdeu a magia, se magia houve, e havia, e não
consigo mais ver nenhum anjo em você, pastor, mago, cigano, herói
intergaláctico, argonauta, replicante, e agora que vejo apenas um rapaz dentro
do qual a morte caminha inexorável, só não sabemos quando o golpe final, mas
virá, cabelos tão negros, rosto quase quadrado, quase largo, quase pálido, onde
já começou a devastação, olhos perdidos, boca de naufrágio vermelho pesado
sobre o escuro da barba malfeita, olho tudo isso que vejo e não tem outra magia
além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a
rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na
tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa — gosto muito
de você gosto muito de você gosto muito de você.
Tantas mortes, não
existem mais dedos nas mãos e nos pés para contar os que se foram. Viver agora,
tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta
alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. Mas o
poço não tem fundo, persiste sempre por trás, as cobras no fundo enleadas nas
lanças. Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo
estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente
fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga,
pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? e quantos mais ainda
restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta
com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora
jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a
tevê, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais
escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha
boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha da esperma tua nos
lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as
cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas alma
existe mesmo? e quem garante? e quem se importa? apagar a luz e mergulhar de
olhos fechados no quente fundo da curva do teu ombro, tanto frio, naufragar
outra vez em tua boca, reinventar no escuro teu corpo moço de homem apertado
contra meu corpo de homem moço também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem
entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições,
dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto: te procuro em outro
corpo, juro que um dia eu encontro.
Não temos culpa,
tentei. Tentamos.
In: Ovelhas
negras. Porto Alegre: L&PM, 2002.
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