Ficou meio irritada
quando bateram à porta e olhou com desânimo para o monte de papéis e livros
esparramados sobre a mesa. Eu tinha pedido que ninguém incomodasse, pensou.
Olhou pela janela, indecisa. Mas quando bateram pela segunda vez ela suspirou
fundo e disse numa voz seca:
— Entre.
À primeira vista
quase não o reconheceu. Tinha deixado a barba crescer e usava uns enormes
óculos escuros. As roupas também eram diferentes. Coloridas, estrangeiras. E o
cabelo mais comprido. Hesitou entre beijá-lo, estender a mão ou apenas sorrir.
Afinal, havia tanto tempo. Como ele não fazia nenhum movimento, limitou-se a
sorrir e a permanecer onde estava, atrás da grande mesa cheia de papéis e
livros em desordem.
— Então é você mesmo — disse. — Welcome, não é
assim que se diz? — Indicou a poltrona em frente à mesa. — Deve ter coisas
sensacionais para contar. — Esperou que ele sentasse, acomodando lentamente as
longas pernas. — Um cafezinho, quer um cafezinho autenticamente brasileiro? —
Riu alto, fingindo ironia. — Garanto que por lá não tinha essas coisas. —
Apertou o botão do telefone interno. — Ana, por favor, traga dois cafés. —
Voltou-se para ele. — Ou você prefere chá? Ouvi dizer que os ingleses tomam chá
o tempo todo. Você deve estar acostumado...
— Café — ele disse. — Sem açúcar.
— Ana, dois cafés. Um sem açúcar.
Soltou o botão e
ficou olhando para ele. Mas ele não dizia nada. Remexeu alguns papéis sem muita
vontade. O silêncio estava ficando incômodo. Tornou a olhar pela janela. Vai
chover, pensou sem emoção, vendo o céu escurecer lá fora. Ele tinha acendido um
cigarro e fumava devagar, as pernas cruzadas. O silêncio pesou um pouco mais.
Se alguém não disser qualquer coisa agora, ela pensou, vai ficar tudo muito
difícil. E abriu a boca para falar. Mas nesse momento a porta abriu-se para a
moça com os dois cafés, um sem açúcar.
— Obrigada, Ana.
Esperou que ela
saísse. Depois mexeu o líquido escuro com a colherinha de prata. Algumas gotas
pingaram no pires.
— Então — disse —, tenho tanta coisa para
perguntar que nem sei por onde começo. Fale-me de lá...
Ele não disse nada.
Estava começando a ficar nervosa.
— Paris, por exemplo, fale-me de Paris.
— Paris não é uma festa — ele disse baixo e sem
nenhuma entonação.
— É mesmo? — ela conteve a surpresa. — E que
mais? Conte...
— Mais? Bem, tem a torre Eiffel... Ela
sorriu, afetando interesse.
— Sim?
— ...tem Montmartre,
tem o Quartier Latin, tem o boulevard Saint-Michel, tem o Café de Flore, tem
árabes, tem...
— Isso eu sei — ela interrompeu delicadamente.
E, quase sem sentir: — E Londres?
— Londres tem Piccadilly Circus, tem Trafalgar
Square, tem o Tamisa, tem Portobello Road, tem...
— A Torre de Londres, o Big Ben, o Central Park
— ela completou brusca.
— Não — ele explicou devagar. — O Central Park
é em Nova York. Em Londres é o Hyde Park. Tem bombas, também. O tempo todo. Ah,
e árabes.
— Pois é — ela amassou uma folha de papel.
Depois desamassou-a, preocupada. Seria algo importante? Não era. Acendeu um
cigarro. — E Veneza tem canais, Roma tem a via Veneto, Florença tem...
— Eu não fui à Itália — ele interrompeu.
— Ah, você não foi à Itália. — Ela bateu o
cigarro nervosamente, três vezes. — Mas à Holanda você foi, não? Lembro que
mandou um cartão de lá. E o que tem lá? Tulipas, tamancos e moinhos?
— Tulipas, tamancos e moinhos — ele confirmou.
— E árabes também. — (Mas afinal o que está havendo?) — E putas na vitrine.
— O quê?
— É. Em Amsterdã. Elas ficam numa espécie de
vitrine, as putas.
— Interessante.
— Interessantíssimo.
Ela ficou um pouco
perturbada, levantou-se de repente e foi até a janela. As nuvens estavam mais
escuras. Vai mesmo chover. Olhou-o por cima do ombro. Afinal, esse cara fica
dois anos fora e volta dizendo essas coisas. Pra saber disso posso ler qualquer
guia turístico.
— O quê?
— Disse que pra saber disso posso ler qualquer
guia turístico.
— É verdade. Você pode.
Odiava aquelas
nuvens escurecendo aos poucos. Na rua as pessoas apressavam o passo, algumas
olhavam para cima, outras faziam sinais para os táxis. Voltou-se para ele, que
examinava os papéis e livros em cima da mesa.
— Eu tenho muito trabalho — ela disse. E
arrependeu-se logo. Ele podia pensar que ela estava insinuando que estava muito
ocupada, que não tinha tempo para ele, que...
— Eu já vou indo — ele disse, erguendo-se da
poltrona.
— Espere — a voz dela saiu um pouco trêmula —,
eu não quis dizer...
— Claro que você não quis dizer. — Ele tornou a
sentar.
Ela voltou à mesa.
Ficou de pé ao lado dele. Mas era como se não o conhecesse mais. Acendeu outro
cigarro.
— Está quase na hora de sair. Se você esperar
mais um pouco, posso te dar uma carona.
— Você tem carro agora?
— É. Eu tenho carro agora... — E se você fizer
qualquer comentário irônico, pensou, se você ousar fazer qualquer...
— Você subiu na vida — ele disse.
Ela concordou em
silêncio. Cruzou os braços. Começava a sentir frio. Ou era aquele ar carregado
de eletricidade? Pensou em vestir o casaco no encosto da cadeira. Mas não se
moveu. O silêncio tinha crescido de novo entre as paredes. Podiam ouvir o
barulho das máquinas de escrever na sala ao lado. E alguém perguntando as horas
numa voz estridente. E um telefone tocando.
— Escute — ela disse de repente. — Nós temos
muito interesse em publicar o seu livro.
Ele não se moveu.
— É um livro... muito forte. — Acendeu outro
cigarro. — Mas a nossa programação para este ano já está completa —
acrescentou rapidamente. — Além disso, há a crise do papel, você sabe, tudo
subiu muito, as vendas caíram, tivemos também um corte de verba, eles estão
mais interessados em publicar livros didáticos ou então autores que já tenham
um público certo, ou...
Teve a impressão de
que ele não estava ouvindo. Descruzou os braços, endireitou o corpo. O frio
tinha passado. Perguntou: — Você deve ter trazido muito material novo, não?
— Não — ele disse. E olhou em volta como se
tivesse acabado de chegar. — É legal aqui. Dá pra ver o rio, as ilhas. Você
deve gostar de ficar aqui.
— É, eu gosto, mas...
Ele tinha levantado
e dava alguns passos pela sala, detendo-se para olhar os quadros e os livros.
— Daqui a pouco vai começar a chover — ela
observou.
Ele olhou pela
janela sem interesse.
— Quer mais um café? Ele não respondeu.
— Se você quiser eu posso chamar a Ana, está
pronto, na garrafa térmica, é só chamar, eu... — Acendeu outro cigarro.
— Você está fumando demais — ele disse. — E
muito café estraga os nervos.
— Você acha? É que às vezes fico meio louca com
esse monte de trabalho e não tenho bem certeza se...
Pensou em queixar-se
um pouco. Mas ele parecia não ouvi-la. Continuava a andar de um lado para outro
entre os livros, os quadros, as poltronas. Às vezes estendia a mão mas, como se
mudasse de ideia no meio do gesto, continuava a andar sem tocar em nada.
Dava-lhe a impressão de que ele estava andando havia horas. Sentiu uma pontada
na cabeça. Deve ser o cigarro. Ou o café. E tornou a olhar pela janela. As
nuvens tinham escurecido completamente.
Agora, ela pensou
apertando as mãos, agora vem uma ventania, um trovão, um raio, depois começa a
chover. Fechou os olhos para depois abri-los lentamente. Mas não tinha
acontecido nada. E ele continuava a andar de um lado para outro.
— Você está muito
nervoso — ela disse sem pensar. Ele parou em frente à janela e tirou os óculos.
Os olhos, ela viu, os olhos tinham mudado. Estavam parados, com uma coisa no
fundo que parecia paz. Ou desencanto.
— Eu estou muito calmo — ele disse.
Mas não eram só os
olhos e o rosto sem barba, não eram só aquelas roupas bizarras, estrangeiras,
nem as duas pulseiras e o anel de pedra roxa, não era só o cabelo mais
comprido...
— Você mudou — ela disse.
— Tudo mudou.
Ele tornou a colocar
os óculos. Ela pensou em pedir-lhe para fechar a janela. Mas não disse nada.
Amassou de novo aquele papel, não tinha importância, não tinha mesmo
importância alguma. Os pingos grossos molhavam os livros e os papéis em
desordem. Por trás dele tinha começado a chover.
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