Para Sergio Keuchguerian
“Você nunca
ouviu falar em maldição
nunca viu um
milagre
nunca chorou
sozinha num banheiro sujo
nem nunca
quis ver a face de Deus.”
(Só as mães são felizes, Cazuza)
Só depois de apertar muitas vezes a
campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete
gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez
mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse
noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada
pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos
bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que
se abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela
apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de
dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais
velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.
Tu não avisou que vinha — ela resmungou no
seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos
anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo,
que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito,
contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro,
cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos.
Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois
foi puxando-o pela mão, para dentro.
— A senhora não tem telefone — explicou. —
Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava
cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira,
os porta retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo
baixinho.
— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um
pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada,
quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a
morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que
esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas
perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.
— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. —
Diz — que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o
jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma
cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se
acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com
noventa e cinco anos. Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá
medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de
manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente),
pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse
continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha,
seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.
As costas dela, tão curvas. Parecia mais
lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as
portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído
e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da
cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela
colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria —
ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.
— Tá fresquinho — ela serviu o café. —
Agora só consigo dormir depois de tomar café.
— A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no
fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então,
enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num
videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de
entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a
ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra
cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima,
sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um
dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.
— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu
não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela riu: na porta.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se.
Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda
amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de
café.
— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse
era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os
olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio,
velhos morangos.
— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só
isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do
robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele,
toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele.
Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os
isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz.
Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa,
ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde,
líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na
borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que
o senhor veio me visitar? Muito bem.
Ele fechou o isqueiro na palma da mão.
Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece
aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela
nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se
importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na
primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém
ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça,
círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca
da borda da xícara.
— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu
avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra
praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente,
ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto,
morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.
— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele
endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana,
vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da
toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta
casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica.
Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores
roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o
cigarro quase no fim.
— E aguentar o Pedro, com aquela mania de
grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no
dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no
quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não
bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a
cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha
tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns
óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No
silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o
branco dos azulejos atrás dela.
— Tu estás mais magro — ela observou.
Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela
cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos.
— E essa tosse de cachorro?
— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou
direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado
por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora,
nesta contramão. Quase falou. Mas
ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a
cadela sarnenta e a trouxe até o colo.
— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas
sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí,
vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro
cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?
A ponta apagada do cigarro entre os dedos
amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por
trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos
branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:
— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
Apagou o cigarro. Tossiu.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego
falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? —
Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa,
aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô
Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.
— A Cândida morreu, mãe.
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da
cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco,
lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião.
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me
livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça,
ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto
manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia
uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém
acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem
dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião
do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente,
como é que tu aguenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E
foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se,
então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha
desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra
jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a
cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou
os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase
sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não
foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia
filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os
dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na
cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto —
ele fechou os dedos. Assim fechados, passou — os pelos pêlos do próprio braço.
Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa,
esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão
bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem
na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem
assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá
escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço
assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que
é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem
irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça
da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega,
também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase
insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é
tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente,
jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras,
colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça,
derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro
enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais
velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez
mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola,
olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal
para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima.
Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria,
antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas
duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro,
sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade,
fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo,
dorme bem.
Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro
enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior.
Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa
enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato
do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da
mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um
revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena
garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos
cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto,
olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma
vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo
do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana,
localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos
assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o
casaco.
Suava muito. Jogou o casaco na guarda de
uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque. Um por
um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse
mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor
antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do
peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço.
Do lado direito, inclinando a cabeça, como
se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão.
Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase
cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às
da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão
linda, Linda.
In: Os
dragões não conhecem o paraíso. Companhia das Letras: São Paulo, 1988, p.
13-22.
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