Para
Elke Maravilha, ex-Bell, ex-Evremidis
I
Não foi
difícil contê-los. No sétimo dia morriam pelas esquinas em estilhaços metálicos
e ruídos de ferragens. A epidemia se alastrara de tal modo que se tornara muito
fácil supreendê-los. Os policiais nem mais se preocupavam em armar ciladas,
disfarçando-se de civis para poderem acompanhar e prevenir a evolução da peste.
Os contaminados – assim haviam sido
chamados pelo Poder – não suportavam o processo por mais de uma semana. Findo
esse prazo, tombavam pelas praças e ruas, os olhos de vidro explodindo em pedacinhos
coloridos, as engrenagens enferrujadas não obedecendo às ordens dos cérebros
enfraquecidos. Alguns tomavam doses enormes de estimulantes para que o cérebro,
funcionando em quase sua totalidade, enviasse ordens cada vez mais violentas
aos membros entorpecidos. Mas os nervos tornados frágeis pela modificação
súbita não resistiam muito tempo – e o primeiro sintoma da derrocada era a
explosão dos olhos.
Milhares
de olhos espatifados enchiam as avenidas. Os mais práticos procuravam as
oficinas: mecânicos azeitavam rótulas e, no terceiro dia, todas as oficinas
haviam se transformado em hospitais. Sabendo disso, e da possibilidade de, a
cada dia, os contaminados descobrirem mais e mais formas de sobrevivência, o
Poder retirou das farmácias todo o estoque de estimulantes e ordenou o
fechamento de todas as oficinas. Legiões fugiam em direção ao campo, corriam
boatos de que era a proximidade com as máquinas o que provocava as mutações.
Mas sabendo também da possibilidade de se formarem grandes comunidades rurais,
o Poder fechou todas as saídas das cidades. Então eles morriam feito ratos, sem
que fosse necessário sequer procurá-los. Seus pedaços eram recolhidos
tediosamente pelos caminhões de limpeza e encaminhados aos ferros-velhos, onde
seriam vendidos como sucata.
Esperava-se
também que, em breve, a epidemia fosse completamente esquecida pela faixa dita normal da população, e futuramente
braços e pernas e seios e pescoços pudessem ser utilizados como objetos
decorativos. Esperava-se ainda industrializar estilhaços de olhos para
transformá-los em contas coloridas que seriam utilizadas na confecção de
colares cheios de axé, para serem
vendidos a turistas ávidos de exotismo. Esperava-se enfim conseguir a união
entre as classes média e alta com as camadas sociais mais baixas pois, com
todos utilizando objetos de origem ex-humana como decoração ou indumentária,
estariam mais ou menos nivelados. Assim, tão logo começou a derrocada, o Poder
divulgou comunicado aos órgãos de imprensa dizendo de seu interesse em
aproveitar da melhor maneira possível os restos mortais dos contaminados. Houve
grande entusiasmo por parte das indústrias, lojas de decoração, butiques e
confecções – e imediatamente os ferros-velhos começaram a ser frequentados por
senhoras ricas e extravagantes. A crise parecia vencida. O Poder aumentou seu
prestígio junto ao povo por ter sabido, uma vez mais, superar tudo de maneira
tão eficiente e criativa.
II
A
epidemia já era coisa do passado quando, em artigos publicados semanalmente, um
jornalista começou a investigar as possíveis causas do fenômeno. A princípio a
população irritou-se e o jornal baixou assustadoramente as vendas: era o preço
que pagava por remexer em assunto tão superado. Mas, não se sabe como nem por
que, o jornalista continuou a publicar seus artigos. Comentou-se que seria
amante da duquesa proprietária do jornal, segundo alguns, ou amante do marido
da duquesa proprietária do jornal, segundo outros, ou ainda amante de ambos, em
bacanais verdadeiramente dionisíacas, segundo terceiros. Contradizendo esses
rumores, ventilou-se também que o jornalista seria um impotente sexual
assalariado por uma poderosíssima organização estrangeira, especialmente para
minar o prestígio do Poder.
Talvez
devido a esses boatos, ou mesmo porque o povo não havia realmente esquecido a Peste Tecnológica - como fora chamada
para efeitos sociológicos -, ou ainda porque algumas das hipóteses aventadas
pelo jornalista, e que não vêm ao caso, fossem bastante viáveis, o fato é que
uns quinze dias mais tarde o jornal dobrou sua tiragem e o assunto passou a ser
comentado nos bares da moda. Os costureiros lançaram a linha-robô, com roupas inteiramente de aço e maquiagem metálica, os
oculistas criaram novas lentes de contato acrílicas, especialmente para dar aos
olhos o efeito de vidro. Surgiram novos manequins, de movimentos endurecidos e
olhos vidrados. Tornou-se extremamente chique frequentar oficinas mecânicas em
vez de saunas, academias de dança ou institutos de beleza. E o jornalista
começou a sair na capa das revistas mais famosas, sucediam-se entrevistas e
debates e depoimentos em programas de televisão, até mesmo um curta-metragem
financiado pelo Poder e dirigido por um rebelde premiado no estrangeiro foi
feito especialmente para mostrar a residência do novo mito das comunicações. Um
chalezinho em chumbo, totalmente mecanizado, com plataformas no banheiro para
lavagens parciais e totais.
Mais
tarde, o jornalista cedeu seu nome e imagem para a publicidade de determinado
óleo de determinada firma. Tornou-se tão conhecido como os mais conhecidos
ídolos de futebol e da televisão. Aos poucos, as mulheres descobriam encantos
secretos em seus ombros magros, seus olhinhos míopes e sua calva luzidia. Uma
famosa atriz de telenovelas apaixonou-se por ele, abandonando sem hesitar o
marido fiel e dois filhos em idade pré-escolar para cortar os pulsos e ingerir
uma dose excessiva de barbitúricos, sendo providencialmente socorrida pelo
mecânico que lhe fazia massagens às segundas, quartas e sextas. Amainado o
escândalo, ambos concederam sóbria entrevista, afirmando serem apenas bons
amigos e, um mês mais tarde, oficializaram seus divórcios casando-se num
pequeno país vizinho. Tornaram-se o símbolo da nova mentalidade, e sua casa
passou a ser frequentada por escritores inéditos, atores em ascensão, manequins
promissoras, costureiros inovadores, jornalistas em evidência, marchands
sensibilíssimos, diretores de cinema alternativo e todos, afinal, que de uma ou
outra forma procuravam contribuir para a evolução da cultura ocidental.
O
Movimento Tecnológico – que a essa altura já influenciava seriamente a música,
a literatura, as artes plásticas, a moda e demais formas de expressão –
ultrapassou as limitadas fronteiras do país para atingir o mundo inteiro. O
índice de exportações aumentou incrivelmente, o país viu crescer suas divisas,
artistas estrangeiros e turistas animados invadiam as cidades e as praias. E um
tempo de prosperidade começava.
III
Enquanto
isso, em porões de um beco escuro, reproduziam-se como coelhos os remanescentes
da epidemia. Quatro deles haviam-se isolado de rumores e máquinas, levando
consigo uma grande quantidade de latas de óleo e estimulantes para sua
manutenção e, como não fossem descobertos, organizaram aos poucos outro sistema
de vida. Já eram mais de meia centena apertados em meio às paredes sujas de
graxa, fazendo amor em ranger de metais e cintilações dos olhos de vidro.
Dispunham-se a sair à superfície para tomarem o Poder quando foram
inexplicavelmente descobertos e denunciados.
A rua
suspeita foi cercada, os policiais derrubaram as portas com metralhadoras e
encurralaram os contaminados contra uma parede úmida onde, com fortes jatos
d'água, conseguiam enferrujar lentamente suas articulações. Morreram todos, da
mesma maneira que seus precursores - à exceção de uma jovem inteiramente
mecanizada, com grandes olhos em vidro rosa e magníficas pernas de aço. Foi
imediatamente recolhida á prisão para ser encaminhada a um especialista em
computadores, e seu nome e foto saíram em todas as páginas policiais. Seu fim
teria sido desgraçadamente o mesmo de seus companheiros, se um famoso
costureiro não tivesse se interessado por ela. Foi visitá-la na prisão e, por
meio de vários e demorados contatos com figuras influentes, conseguiu
libertá-la para mais tarde lançá-la como principal manequim de sua coleção de
outono.
A jovem,
conhecida artisticamente como Robhéa, alcançou um espantoso sucesso. Galgou
todos os degraus da fama em pouquíssimo tempo, acabando por filmar com os
cineastas mais em voga no momento, ganhando prêmios e mais prêmios em festivais
internacionais e sendo eleita Rainha das Atrizes durante cinco carnavais
seguidos. Foi no último carnaval que, sem dar explicações, ela fugiu
abruptamente do baile, espatifando a fantasia e repetindo em inglês que queria
ficar sozinha. Retirou-se para uma ilha deserta e inacessível, onde viveu até o
fim de seus dias. Comentou-se que era homossexual, e fora obrigada pelos
empresários a esconder esse terrível fato do grande público. Uma jovem que fora
sua camareira publicou um diário chamado Minha
vida com Robhéa, best-seller
durante dez anos seguidos, com edições revistas pela autora, adaptações para
rádio, televisão, cinema e fotonovela, proporcionando à ex-camareira a
candidatura, ao mesmo tempo, aos Prêmios Nobel da paz e da Literatura.
Excursões e expedições foram organizadas por legiões de fãs em desespero para
chegarem até a ilha, guardada por animais selvagens, najas venenosíssimas e
plantas carnívoras. Tudo inútil.
Muitos
anos depois, os jornais publicaram uma pequena nota comunicando que Robhéa,
ex-manequim, ex-atriz de cinema e robô de sucesso em passadas décadas,
suicidara-se em sua ilha deserta e inacessível tomando um fatal banho de
chuveiro. Seus restos enferrujados e mumificados foram colocados na Praça da
Matriz no planalto central e, desde então, foram publicados fascículos com sua
vida completa e fotos inéditas, os travestis passaram a imitá-la em seus shows e, quando as discussões versavam
sobre as grandes cafonas do passado, seu nome era sempre o primeiro a ser
lembrado.
ABREU,
Caio Fernando. Ascensão e queda de Robhéa, manequim & robô. In: O ovo apunhalado. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 42-47.
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