Lo que importa es la no-ilusión. La mañana nace.
(Frida Kahlo, Diários)
O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui
dentro.
Fora: quase novembro, a ventania de primavera
levando para longe os últimos maus espíritos do inverno, cheiro de flores em
jardins remotos, perfume das primeiras mangas maduras, morangos perdidos entre
o monóxido de carbono dos automóveis entupindo as avenidas. Dentro: a fila que
não andava, ar-condicionado estragado, senhoras gordas atropelando os outros
pelos corredores estreitos sem pedir desculpas, seus carrinhos abarrotados,
mortíferos feito tanques, criancinhas cibernéticas berrando pelos bonecos
intergalácticos, caixas lentas, mal-educadas, mal-encaradas. E o suor e a
náusea e a aflição de todos os supermercados do mundo nas manhãs de sábado.
Ela olhou as próprias compras;
bolachas-d’água-e-sal, água com gás, arroz integral e, num surto de
extravagância, um pote de geleia de pêssegos argentinos. “Duraznos”, repetiu
encantada. Gostava de sonoridades. E não tinha mãos livres para se abanar. E a
mulher de pele repuxada amontoara no balcão seus víveres, dois carrinhos transbordantes
de colesterol e sugar blues. Ela
suspirou. E olhou para cima, de onde a espiava uma câmara de TV, como se fosse
uma ladra em potencial, e olhou também as prateleiras dos lados do corredor
polonês onde estava encurralada e viu montanhas de pacotes plásticos com
jujubas verdes, rosa e amarelas, biscoitos com sabor de bacon, cebola,
presunto, queijo. E latas, pilhas de latas.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIzK6RqWMwabkrkti5lj3V0TI0jpN2ZnUu0DGpTaenCAgjPcuya8HBvDmeuvkb0l22c1QNUqhPYR-WvjwruVHHCMyFp92Y_uk0KSy2CPDfg5nJJMpfxztvcgN-XygaFAkkG58IxdmIEcG2/s200/Arranjo+rosas+amarelas.jpg)
Foi então que o viu na fila ao lado, já passando pela caixa. Não estava mais gordo, não no rosto pelo menos, nem mais calvo. Mas havia no corpo magro uma estranha barriga que parecia artificial. E rodas de suor nas axilas, manchando o tecido sintético da camisa branca social de manga comprida. Sem jeito, sem vê-la, ele tentava enfiar as compras nas sacolas de plástico, e enviesando a cabeça ela investigou curiosa: vodca, uísque, Campári, pilhas de salgadinhos plásticos, maionese, margarina, pacotes de jornal com cruas linguiças sangrentas, outro carrinho cheio até as bordas de latas de cerveja, queijo, patê - seria uma festa? -, mais latas, muitas latas, seleta de legumes, massa de tomate, atum. As sacolas furavam, latas despencavam pelo chão, ele curvava-se para apanhá-las tentando assinar o cheque, e ninguém o ajudava. Ele era um homem que conhecera havia muito tempo, quando ainda não era esse urbanóide naquele supermercado mas apenas um quase jovem recém-chegado de anos de exílio político no Chile, Argélia, depois a pós-graduação em Paris, em algum assunto que ela não lembrava direito. Só sabia que ele o tempo todo falava num certo simulacro de uma tal imagerie, as pernas cruzadas no sofá forrado de algodãozinho estampado de lilás e malva da sala do apartamento dela, as pernas apertadas com força protegendo as bolas, como se ela estivesse sempre a ponto de violentá-lo no segundo seguinte, falando e falando sem parar em Lacan e Althusser e Derrida e Baudrillard, principalmente Jean Baudrillard, enquanto ela se ocupava em servir mais vinho branco seco gelado com pistache, contemplar as rosas amarelas no centro da mesa e comover-se a admirá-lo, assim jovem, assim estrangeiro no próprio país, assim aterrorizado com qualquer possibilidade do toque de outro humano em sua branca pele triste sem amor vinda do exílio.
“Você sabe viver”, dizia ele. Ela sorria modesta,
mais sarcástica do que lisonjeada. Mal sabia ele do quanto, entre as traduções
do alemão, ela mourejava feito negra passando panos com álcool nas paredes,
aspiradores nos tapetes, recolhendo cortinas para a lavanderia, trocando
lençóis todo santo dia, lavando louça com as próprias mãos avermelhadas que
olhava melancólica quando ele dizia essas coisas, ensaboando no tanque roupa
quase sempre branca, quase sempre seda, que não tinha nem teria jamais máquina,
picando cenouras, rabanetes e beterrabas para saladas cruas, remexendo em
panelas de barro com colher de pau, odiava microondas, para sempre e sempre
exausta de tudo aquilo. Seu único consolo era a fita com Astrud Gilberto e Chet
Baker sempre cantando búdicos ao fundo.
Limpa, ordenada, trabalhadeira, aquela mulher, todo
dia. E morta de cansaço e amor sem esperanças por aquele homem que não a via
nem veria jamais como realmente era, nem a tocaria nunca. Admirava-a para não
precisar tocá-la. Conferia-lhe uma superioridade que ela não possuía para não
ter que beijá-la. Dissimulado, songamonga, recolhia nomes, telefones, endereços
de pessoas e lugares provavelmente úteis algum dia para a Árdua Tarefa de Subir
na Vida, vampirizava cada um dos amigos dela, sobretudo os que detinham alguma
espécie de poder, editores, políticos, jornalistas, donos de galerias de arte,
cineastas, fiadores, produtores. Sedutor, insidioso, irresistível.
- “Vamos jantar uma hora dessas”, insinuava ambíguo
para todo mundo. Durante três anos. Nunca lhe dera um orgasmo. Nunca deitara nu
ao lado dela na cama, nua também. No máximo sussurrava doçuras tipo: “Fica
agora assim por favor parada contra essa janela de vidro que a luz do
entardecer está batendo nos seus cabelos e eu quero guardar para sempre na
memória esta imagem de você assim tão linda”.
Não, ela não era tola. Mas como quem não desiste de
anjos, fadas, cegonhas com bebês, ilhas gregas e happy ends cinderelescos, ela
queria acreditar. Até a noite súbita em que não conseguiu mais. E jogou copos
de uísque na cara dele, ligou bêbada de madrugada durante dias, deixou recados
terríveis na secretária eletrônica ameaçando suicídio, assassinato, processo,
chamando-o de ladrão, “Quero porque quero minhas fitas de Astrud e Chet de
volta, sua bicha broxa”, bem bruta e irracional repetindo o que seu analista,
também exausto de tudo aquilo, dissera não especificamente sobre ele, mas sobre
todos os homens do mundo: homossexual enrustido que não deu o cu até os trinta
e cinco anos vira mau-caráter, minha filha. Ele tinha trinta e sete quando se
conheceram. Agora quantos mesmo? Uns quarenta e três ou quarenta e quatro, era
de Libra, daquele tipo que não sabe a hora de nascimento. E aquela barriga
nojenta, aquele Ar de Quem Venceu na Vida, aquela camisa sintética, as rodas de
suor, as calças Zoomp com pregas, as bolsas de plástico barato do super, três
ou quatro em cada mão, saindo torto e quase gordo do supermercado.
Atrás dela, na fila, alguém empurrou-a com o
carrinho. A caixa esperava com ar entediado e sotaque paraíba: “É cheque,
cartão ou dinheiro, quéééérida?”. “Dinheiro”, ela disse. E jogou sobre o balcão
a nota retorcida, como se fosse uma serpente viva. Depois pegou as poucas compras
e caiu fora. Ausgang!
Lá fora o vento bateu em sua saia longa, fazendo-a
voar. “Estou sem calcinha”, ela lembrou. E pensou em Carmem Miranda. Mas deixou
que voasse e voasse. Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de
carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos
ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em
busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde
pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma
amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro
e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele
céu azul - daquela não-dor, afinal.
ABREU,
Caio Fernando. Estranhos estrangeiros.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 11-14.
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