O que me aterroriza neste conto de 1975 é a sua
atualidade. Com a censura da época, seria impossível publicá-lo. Depois, cada
vez que o relia, acabava por respeitá-lo com um arrepio de repulsa pela sua
absoluta violência. Assim, durante vinte anos, escondi até de mim mesmo a
personagem dessa mulher-monstro fabricada pelas grandes cidades. Não é
exatamente uma boa sensação, hoje, perceber que as cidades ficaram ainda piores
e pessoas assim ainda mais comuns.
Enfim, enumerou na esquina, Raul
se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã, e este maldito velho com
passinho de tartaruga bem na minha frente, eu tenho pressa, quero gritar que
tenho muita pressa, Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel
azul três dias depois da Martinha confessar que estava grávida de três meses, e
não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não quer deixar eu passar?
tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a putinha, crispou as mãos de unhas
vermelhas pintadas na alça da bolsa, pivetes imundos, tinham que matar todos,
venha urgente, ir como com aquele desconto de trinta por cento no salário e
todos os crediários, papai muito mal pt, apoiou-se, não, não se apoiou, não
havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida que não
estava ali, havia só os corpos, centenas deles indo e vindo pela avenida, ela
roçando contra as carnes suadas, sujas, as gosmas nas lentes dos óculos, como
se não bastasse a tia Luiza agora que nem criancinha, mijando nas calças,
brincando de boneca, dá licença, minha senhora, tenho seis crediários para
pagar ainda hoje sem falta, aqueles jornais cheios de horrores, aqueles
negrinhos gritando loterias, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando
o concreto, naquele dia, a fumaça negra dos ônibus e eu de blusa branca, a
idiota, introduzindo devagar a chave na porta do, apartamento de Arthur, buquê
de crisântemos na outra mão, uma hora tão inesperada, e tão inesperados os
crisântemos, a senhora não vai andar mesmo? o sinal já abriu faz horas, só uma
cretina seria capaz de trazer duas crianças ao centro da cidade a esta hora,
ele jamais poderia imaginar, o ruído leve da chave abrindo a porta, animal, por
que não olha onde pisa? atravessar a sala na ponta dos pés, abrir a porta do
quarto e de repente a bunda nua de Arthur subindo e descendo sobre o par de
coxas escancaradas da empregadinha, meu deus, mulatinha ordinária, se pelo
menos fosse uma profissional, eu podia entender, eu não podia entender, vomitou
no elevador sobre os crisântemos amarelos, não, não sei onde é a Casa Oriente,
pergunte para o guarda, agora ele vai morrer, será castigo? câncer no baço,
nunca mais seu cheiro de cavalo limpo, nunca mais o peso e os pêlos de seu
peito sobre meus seios quase murchos, a putinha, a mulatinha vadia, por isso me
olhava com aquele ar superior, ainda por cima esse calor absurdo em pleno
inverno, o eixo da Terra, dizem, a estufa, o ozônio, tudo um horror, em dez
anos estaremos todos surdos, cegos, envenenados, as lãs do começo do dia
vertendo suores entre as pernas, como é que uma gorda dessas pode sair à rua ao
lado de outra gorda ainda mais larga? fazem de tudo para atravancar o movimento
alheio, se pelo menos tivessem avisado a gente, você não vai me vencer, ouviu
bem sua vida de merda? eu vou ganhar de você no braço na raça e quem se meter
no meu caminho eu mato, sem falar no Marquinhos o tempo todo enfiando aquelas
coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a droga, e sou eu sozinha quem
carrega todo esse peso nas costas, isso ninguém percebe, ninguém valoriza, não,
eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais, no colégio já diziam,
certo talento pra dança, eu tinha, e a Lia Augusta agora querendo ser modelo,
fortunas naquelas fotos, não tenho nada com isso mas falei assim pra lolanda,
bem na cara dela: é tudo puta, o senhor por favor poderia fazer o obséquio de
tirar o cotovelo da minha barriga? porque precisa ser super-humana, vocês estão
me entendendo, seus porcos, boiada, manada, desviou com nojo do velho, a
pústula exposta, vai pedir dinheiro na Secretaria da Fazenda, já cansei de
dizer que mendigo é problema social, não pessoal, a cadela da Rosemari bebendo
cada vez mais, meio litro de uísque até o meio-dia, depressão, ela diz, no meu
tempo isso tinha outro nome, pouca-vergonha era como se chamava, este fio fino
de arame atravessado na minha testa, de têmpora a têmpora, vibrando sem parar,
é preciso sim ser biônica, atômica, supersônica, eletrônica, vocês pensam que
eu sou de ferro?
Quando ia começar a rir alto
parada na esquina, viu a bilheteria do cinema, a franja de Jane Fonda, imaginou
a temperatura amena, o escuro macio na medida exata entre o seco e o úmido e
pelo menos, decidiu olhando o relógio, ainda dá tempo, os crediários podem
esperar, pelo menos duas horas santas limpas boas de uma outra vida que não a
minha, a tua, a dela, a nossa, uma vida em que tudo termina bem.
Foi então que a menina segurou seu
braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no
hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia. Ela disse
não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça da bolsa enquanto puxava a
entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A menina insistia só um troquinho
pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça bonita, tão perfumada. Ela
repetiu não tenho e de novo não tenho, mas a menina olhava o troco pedindo
cinqüenta centavinhos, uma tia tão bonita, eu tô com tanta fome e o meu
irmãozinho desenganado no hospital e a minha mãezinha entrevada em casa, eu que
cuido. Ela gritou não tenho porra, e foi tentando andar em direção à porta do
cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros olhavam, e não me
chama de tia, mas a menina não largava seu braço. Assim: ela segurando com
força a alça da bolsa fechada enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a
menina que não parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se
livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então que a menina
cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo ouvindo apesar
do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras, a menina
gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda podre. Tão
exato, subitamente. Inesperado, perfeito. Mais contração que gesto. Mais
reflexo que movimento. Como um passo de dança ensaiado, repetido, estudado. E
executado agora, em plenitude. Ela ergueu a perna direita e, com o joelho, pelo
estômago, jogou a menina contra a parede. A menina escorregou gritando
cadela filha da puta rica nojenta vai morrer toda podre. Mas tantos carros
passando e tanto barulho mas tanto tanto, justificaria depois, à noite, na mesa
do jantar, bem natural, servindo a sopa ainda não decidira se de ervilhas ou
aspargos, sabem, hoje me aconteceu uma coisa que, tudo vibrando tanto, tudo se
movendo tanto, tudo girando tanto, esse arame atravessado na minha testa, uma
coroa de espinhos. Certeira, com a ponta fina da bota acertou várias vezes as
pernas da menina caída. Alonga e contrai e bate e volta e alonga e contrai e
bate e volta: exatamente como numa dança, certo talento, todos diziam.
Mas não esperou pelo sangue.
Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote
de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo
ainda de ver no espelho da sala-de-espera uma cara de mulher quase moça,
cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas
pintadas crispadas com força na alça da bolsa.
Quase uma assassina, não pensou,
meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem horror na poltrona no momento
em que as luzes começavam a diminuir. Apertou a bolsa no colo, puxou com as
unhas, para baixo, a gola alta arranhando o pescoço, cheiro de bicho, sentiu,
cheiro meu de bicho eu brotando do meio dos meus seios quase murchos, seis
crediários e esse dinheiro por um filme que nem sei direito, Arthur deve estar
morrendo mais um pouco agora, os cabelos finos e frágeis da quimioterapia. Ah,
se enforcar feito Raul, se deixar atropelar igual Lucinda, regredir como tia
Luiza, emprenhar que nem Martinha, trair como Arthur, se drogar igual
Marquinhos, beber feito Rosemari, virar puta que nem Lia Augusta: biônica
atômica supersônica eletrônica — catatônica o dia inteiro no canto do pátio,
enrolando no dedo um fio de cabelo ensebado, os outros mijando e cagando em cima
dela, a pia cheia de louça de três meses, lesmas, musgos, visgos, deixar
apodrecer a vida como a vida deixou apodrecer o coração, não, não nasci para
este mundo, a bunda num subindo e descendo sobre um par de coxas alheias, ainda
por cima mulatas, nunca mais e eu de blusa branca e com crisântemos amarelos,
puta fudida, cadela escrota, ai que vou morrer toda podre por dentro, por fora.
O bico da bota ardia querendo mais, cinco anos no fundo de uma cama, e de
repente o contato do joelho quente de uma perna estendendo-se da poltrona ao
lado, tentou prestar atenção nas imagens, a silhueta das cabeças, meu deus, que
boca tem a Jane Fonda, pensou em mudar de lugar, mas tão cansada, um oceano de
paz, e antes de decidir arriscou um olho para o nariz poderoso do macho ao lado
desenhado no escuro a seu lado, e suspirou mole, por que não, ninguém vai
saber, cadela gorda no cio afundada cada vez mais na poltrona, a boca cheia de
pipocas. Pouco antes de abrir as pemas deixando os dedos dele subirem pelas
coxas, bem devagar, para não assustá-lo, ainda esfregou as palmas secas das
mãos uma contra a outra, tão ásperas, o espelho da sala de espera, uma lixa,
que pele meu deus tem a Jane Fonda, o lixo das mas e o roxo das olheiras tão
fundas, mas tão fundas pensou acariciando o rosto enquanto um dedo dele entrava
mais fundo, tão fundas que resolveu, eu mereço, danem-se os crediários, custe o
que custar saindo daqui vou comprar imediatamente um bom creme de alface.
ABREU,
Caio Fernando. Creme de alface. In: Ovelhas negras. Porto Alegre:
L&PM, 2002. p.127-133.
Livre expressão de seus preconceitos. Sem máscaras nem compaixão. Ao mesmo tempo que opressora, oprimida.
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