terça-feira, 19 de abril de 2011

Dois ou três almoços, uns silêncios / Fragmentos disso que chamamos de "minha vida"

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias encravadas no dia a dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

In: ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

11 comentários:

  1. Sei o quanto pode parecer paradoxal iniciar um clube de leitura de contos com a proposta de discussão de uma crônica, mas depois de passar horas relendo os contos do Caio, nenhum me pareceu mais inspirador. Além disso, sinceramente considero este texto um conto. Não vou entrar na discussão de gêneros, mas acho que ele só está classificado como crônica porque foi publicado como crônica, porém em um espaço no qual o próprio Caio afirmou ter “carta branca” pra publicar o que quisesse.

    É meu texto favorito. É uma forma tão delicada e ao mesmo tempo tão profunda de falar do medo de arriscar que põe tudo a perder, da cegueira nossa do dia a dia, incapazes de reconhecer “uma possibilidade de amor”...

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  2. Concordo, e acrescento, é medo, é comodismo e uma série de situações que a sociedade nos impõem, as quais escamoteam outras dimensões da vida. Ademais, gostaria muito modestamente de tentar trazer luz, uma dimensão para mim existencial. Neste sentido, as abençoadas pessoas que tem a possibilidade de arriscar, isto é, concretamente tem a possibilidade de um novo amor - ou simplesmente de um amor - por que não arriscam? Particularmente, num cenário, em que, aparentemente - ou realmente - está tudo dando errado. Me inquieto com tal fato e talvez nunca alcance uma resposta satisfatória!

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  3. Olá!!!
    Sou leitora de Caio F. há anos mas não conhecia este conto. Amei!!!
    Estava acostumada com os textos audaciosos, picantes e provocantes. esta delicadeza toda pra tratar de amor é comovente.
    Quando o leio parece que estou pensando aquelas palavras. Caio F. materializou o que eu sinto através da literatura, por isso gosto tanto dele.
    "Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania." Lindo!!!

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  4. É verdade que existe a possibilidade da pessoa se magoar por investir num relacionamento que não vai dar certo, porém se não se arriscar nunca vai saber se poderia ter sido feliz.
    Sei que o autor teve várias tentativas frustradas, mas acho que a mensagem que ele quer passar nesse conto é de que devemos continuar tentando. Devemos ficar atentos para as epifanias.

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  5. Talvez o melhor momento de um relacionamento seja exatamente esse, o flerte. Depois começamos a conhecer o outro e vem a intimidade e começam a surgir os problemas, os desentendimentos. Acho que era disso que o CFA estava falando, do medo de não dar certo.
    Muitas vezes nós nos escondemos e não arriscamos, porque afinal o que temos são possibilidades de amor, não é uma certeza e tentar pode significar se expor e se magoar.

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  6. O que me encanta no Caio e, portanto, neste conto ou o que quer que seja, é o olhar diferente e delocado sobre as mesmas coisas que olhamos nos nossos dias, semanas, meses. Goste de Caio e de Clarice, são meus preferidos. Mas a diferença entre um e outro é que Clarice é grave e Caio é leve; não tem medo de escrever banalidades. E olha as banalidades de uma forma muito bonita.

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  7. O gênero crônica trata do cotidiano, devido à sua origem que remete à narração de fatos no jornal. Ela evoluiu. Se aproximando, ora do conto, ora da poesia e quando a tentamos rotular, se esvai pelas beiradas das classificações. Assim são os textos de Caio. Ágeis e profundos. Pequenas reminiscências que abrem janelas para o humano de seu tempo, de nosso tempo, (...) “quando preciso me embriagar um pouco com urgências de vida porque se considerar a cada minuto a possibilidade de morte- então paro imediatamente de viver.” (ABREU, 1996,p. 17.)Leitor voraz de Clarice Lispector, Caio apresenta características bem marcadas, como o teor existencialista de seus textos. Um olhar de dentro para fora, marcando bem as circunstâncias reveladoras de um mundo que desdobra os acontecimentos confundindo o lugar real em que ocorre, se dentro ou fora de si.
    Outra pista sobre a crônica de Caio: revelar joias encravadas no dia a dia . Expressar o cotidiano até extrair dele a síntese do essencial que deve ser exposto e que merece ser dito, revelado. A essência do escritor é aquilo que ele acha melhor dizer naquele instante. Estilo é o modo que ele encontra para dizê-lo. E o de Caio é inconfundível. Uma soma de irreverência e escrita coerente, de uma mente inquieta e sempre aberta a descobertas sobre o ato de (re)escrever a própria vida. Obra e autor se confundem num emaranhado de gestos e percepções. O mesmo Caio que fala da dor da morte do amor (que dói mais que a dor da morte física, por ser morte anormal: a pessoa continua ali viva). É o mesmo que “se reconhece como alguém que não quer ser outra coisa a não ser o que é e não quer viver outra vida que não seja a sua.” (Suplemento Autores Gaúchos, 2006, p. 16). Achei que este pedaço de um artigo meu seria pertinente a este debate, um abraço a todos obrigado pelo convite para participar do debate. Sou o Éderson, de Florianópolis e moro na praia do Cassino, no Rio Grande do sul e amo a literatura do Caio, assim como todos vocês.

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  8. Caio F. nos mostra o mínimo que não enxergamos neste cotidianos de esperas. Brinca com as possibilidades da linguagem e joga com nossas emoções.Perfeito.

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  9. Oi, Simone, adorei esta crônica/conto do Caio. Pura delicadeza e suavidade! A mim parece que ele quer nos mostrar que mesmo "empoeirados" pela descrença podemos sentir as pequenas epifanias das quais aliás a nossa vida é feita, e de "possibilidades". Muito bom!

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  10. Olá!Adorei o convite para visitar este espaço.e o espaço está maravilhoso tbm.é bom que haja meios de divulgação seguros da obra do CFA.Passe sempre por lá também,embora não seja Caio,ele me inspira muito no que escrevo!

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  11. Não li todos os comentários, mas sobre o texto ele é absurdamente delicado. Acho que pensamos no amor como algo que deve sempre ser muito profundo e mudar completamente a nossa vida, e o autor fala justamente de como o amor às vezes pode vir leve como uma brisa. Eu penso que o amor pode ser de tantos jeitos...e sobretudo pode se resumir a uma tarde com alguém que nunca mais iremos ver, ou o sentimento por alguém que nem conhecemos pessoalmente, ou, ou, ou...quando o sentimento é verdadeiro, pouco importa o tempo que irá durar. Pra mim, Caio diz isso...a possibilidade do amor, presume já a sua presença. O que se segue, aí, sim, é a escolha de viver ou não este amor. E sim, há medo, insegurança e tudo o mais, afinal, somos seres complexos e nem sempre é só o puro e simples amor que está em jogo.

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